O problema da Amazônia não é sua imensidão geográfica. Também não são os recursos financeiros — ou a falta deles. O retrato de uma floresta desmatada, que se tornou um foco de crimes em série, como o assassinato do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips, foi pintado por governos brasileiros, que, ao longo dos anos, impuseram um modelo predatório para a Amazônia e, mais recentemente, o desmonte de órgãos públicos.
A conclusão é óbvia — e não pouco dolorosa — após a leitura desta entrevista concedida ao Correio pelo paraense Felício Pontes, que atuou por 18 anos como procurador da República na Amazônia, e, hoje, é procurador-regional da República, representa o Ministério Público Federal no TRF1, em Brasília, que é o tribunal de apelação das causas originárias da Amazônia.
Didático, o procurador explica como, em 40 anos, a Amazônia perdeu um quarto do seu território para o desmatamento. “O modelo predatório se implantou na Amazônia com cinco atividades básicas: madeira, pecuária extensiva, mineração, monocultura e energia. E criou consequências desastrosas”, diz. E vai além: “Nos últimos anos, houve um processo de desmonte dos órgãos públicos que são essenciais para a defesa da Amazônia e seus povos”.
Cita ainda as fontes de financiamento desse modelo: Banco do Brasil, Banco da Amazônia e Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (Sudam). “Não faltou dinheiro. Porém, o resultado não se coadunou com a Amazônia. A região tinha uma taxa de desmatamento de 0,5% na década de 1970… Em cerca de 40 anos, desmatou-se quase um quarto da Amazônia brasileira.”
Mestre em direito público e atuante nos processos coletivos em defesa dos povos das florestas e das comunidades indígenas do Brasil, o procurador cita outros números que jogam luz sobre a situação de abandono. “Foram 19 pessoas assassinadas em conflitos no campo este ano. Delas, 15 foram cometidas na Amazônia, sem contar o Bruno e o Dom. A maioria das mortes foi de indígenas. Esses dados indicam que a impunidade impera e este talvez seja o maior fator para a escalada de assassinados na Amazônia”, afirma o procurador, que é autor do livro Povos da Floresta: Cultura, Resistência e Esperança.
O senhor acompanha os conflitos socioambientais da região mais cobiçada do planeta, o que está em curso hoje é a degradação total da Amazônia?
O que está em curso é uma guerra entre dois modelos diferentes de desenvolvimento. O primeiro pode ser chamado de desenvolvimento predatório. O segundo, de socioambiental. O modelo predatório se implantou na Amazônia com cinco atividades básicas: madeira, pecuária extensiva, mineração, monocultura e energia. E criou consequências desastrosas. Fora o ciclo da borracha, durante a Segunda Guerra Mundial, o Brasil não havia realizado nenhum verdadeiro plano de desenvolvimento da Amazônia. Isso apenas se deu durante a ditadura civil-militar. Em termos simples, o plano era a exploração de madeira, em primeiro lugar. O que sobrasse da floresta seria derrubado para a plantação de capim (pecuária extensiva). Paralelamente a essas atividades, o plano era explorar todos os minerais possíveis para exportação. Os rios foram vistos apenas como fonte de energia elétrica, esquecendo-se seu uso múltiplo. E mais recentemente, trocou-se a floresta mais biodiversa do Planeta pela monocultura de commodities.
Quem financiou esse plano?
Três grandes fontes públicas: Banco do Brasil, Banco da Amazônia e Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (Sudam). Não faltou dinheiro. Porém o resultado não se coadunou com a Amazônia. A região tinha uma taxa de desmatamento de 0,5% na década de 1970. Essa taxa alcançou 20% na primeira década deste século. Ou seja, em cerca de 40 anos desmatou-se quase um quarto da Amazônia brasileira. Essa parte desmatada hoje concentra nove em cada 10 mortes de ativistas no campo do Brasil. E mais. Desde 1995, foram libertados cerca de 55 mil trabalhadores escravizados em todo o país. Metade estava na Amazônia. Outra consequência da implantação desse modelo foi um forte êxodo rural. Em 1960, 35% da população da Amazônia era urbana. Hoje, após a massificação desses projetos, quase 80% dos amazônidas estão nas cidades. O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da região é inferior ao da média nacional — que já é vergonhoso. Portanto, a injeção de dinheiro público promoveu mais concentração de renda, desmatamento e violência. A conclusão é que esse plano não obteve sucesso, sobretudo do ponto de vista socioambiental.
A situação piorou nos últimos anos e por qual motivo?
Nos últimos anos, houve um processo de desmonte dos órgãos públicos, que são essenciais para a defesa da Amazônia e seus povos. Há um exemplo que vem do Supremo Tribunal Federal (STF) e sintetiza isso. Na ADPF 709, ao fundamentar uma recente decisão contra a Funai (Fundação Nacional do Índio), o ministro Luís Roberto Barroso estabelece um capítulo chamado “O contexto de retrocesso das políticas indigenistas”. É uma lúcida análise de situação. Ele constata que além de não demarcar, a União editou atos administrativos com o objetivo de “revisar” demarcações em curso; não incluir terras indígenas não homologadas nos sistemas de identificação de terras públicas; não fornecer serviços públicos a comunidades cujas terras não estivessem homologadas; mudar o critério da autoidentificação para heteroidentificação de povos indígenas; e retirar a proteção territorial de terras indígenas não homologadas.
Há muitas mortes no local sem esclarecimento?
O Correio noticiou na semana passada o relatório da Comissão Pastoral da Terra (CPT), que é a fonte mais confiável sobre o tema no Brasil. Foram 19 pessoas assassinadas em conflitos no campo este ano. Delas, 15 foram cometidas na Amazônia, sem contar o Bruno e o Dom. A maioria das mortes foi de indígenas. Esses dados indicam que a impunidade impera e este talvez seja o maior fator para a escalada de assassinados na Amazônia.
A Amazônia é uma terra sem lei, pela geografia, imensidão e pelos conflitos relacionados?
Ainda reina na Amazônia a impunidade. Lembro que, neste século, o assassinato da irmã Dorothy Stang foi o único em que pistoleiros, intermediários e mandantes foram levados a julgamento e condenados. Esse fato mostra que a pressão nacional e internacional ainda é a mola propulsora da atuação estatal. Não acredito que a imensidão geográfica seja um problema. A tecnologia que temos no Brasil é suficiente para indicar onde agir. Em 2020, uma ação civil pública do MPF mostrava o aumento do desmatamento. Entretanto, era preciso agir em apenas 16 pontos (hotspots) da Amazônia, que eram responsáveis por 80% do desmatamento. O governo não agiu. O problema não é a imensidão.
Como proteger povos originários sem condições do poder público e com tantos interesses envolvidos?
É preciso estabelecer um novo modelo de desenvolvimento que chamo de socioambiental. Ele parte de um princípio básico: articulação entre a biodiversidade e a sociodiversidade. Dito de outro modo, ele concilia desenvolvimento econômico com preservação ambiental. É concebido e voltado para os povos da floresta que possuem centenas de anos em conhecimento na forma de lidar com os recursos florestais sem o impacto suicida.
Suas principais atividades podem ser sintetizadas no termo agroecologia. São produtos cada vez mais fortes no mercado, como açaí, castanha-do-pará, cacau, óleos de andiroba e copaíba… Isso sem falar no que ainda não foi estudado. O Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG) estima que, de 10 espécies existentes no Planeta, uma esteja na Amazônia. O potencial farmacológico da flora amazônica só foi estudado em 5%. O Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) estima que 788 espécies de sementes da região possuem interesse econômico, mas apenas metade delas foi estudada.
É um modelo redistribuidor de renda porque predomina a forma coletiva de uso da terra, como reservas extrativistas, terras indígenas, territórios quilombolas e projetos de desenvolvimento sustentável. Seu cultivo é realizado por indígenas, quilombolas, camponeses(as), agricultores(as) familiares e povos e comunidades tradicionais. Essa forma de agricultura é a responsável por cerca de 70% do alimento dos brasileiros.
Mesmo que se leve em conta apenas o aspecto econômico, o conjunto de 17 tipos de atividades do ecossistema amazônico — do abastecimento de água e regulação climática ao fornecimento de alimentos, como peixes, frutas e castanhas — pode nos dar US$ 692 bilhões por ano.
A Amazônia está nas atuais condições em razão de um modelo econômico equivocado? Por quê?
O modelo predatório está esgotado e o novo modelo ainda não se instalou. No Direito também ocorre essa transição. Antes, não levava em consideração os povos originários. Ao contrário, era um Direito que no primeiro momento escravizou esses povos e promoveu o genocídio. Num segundo momento, esses povos foram tutelados, considerando que não tinham desenvolvimento mental suficiente para serem sujeitos de direito. Somente no fim do século passado, é que a legislação, por luta dos povos da floresta, se deu conta de que todas essas pessoas são sujeitos de direitos, dentre os quais a autodeterminação. Ou seja, eles têm o direito de traçar os seus próprios destinos e não seus destinos serem traçados por outras pessoas.
Como integrar as etnias indígenas em um plano de desenvolvimento amazônico?
Esses novos ventos amazônicos encontram eco nas instituições jurídicas, onde esse processo é chamado de interculturalidade. Em resumo, não se pode mais impor nossa cultura quando se está diante de uma cultura diferente. É necessário reconhecer a importância desses grupos minoritários para as decisões estatais. É necessário internalizar as diversas cosmovisões nas estruturas institucionais do Estado. É necessário valorizar o conhecimento desses grupos como dádiva à humanidade.
Em verdade, trata-se da consagração do pluralismo político, que é a tal ponto importante no sistema jurídico brasileiro que a Constituição o elencou em seu artigo 1º como um dos fundamentos da República, ao lado da dignidade da pessoa humana.
Nós estamos trilhando esse caminho. Os tribunais estão, pela primeira vez, levando em consideração as opiniões, crenças, tradições e espiritualidade dos povos originários, dos povos e comunidades tradicionais, nas decisões judiciais, na Colômbia, Peru, Bolívia, Brasil, bem como a Corte Interamericana de Direitos Humanos. A jurisprudência está se formando, ainda que a passo curto.
Como chegar a uma Amazônia sustentável?
Então, vivemos em um processo de transição. Foram 500 anos de uma mesma doutrina, que não levava em conta o direito e a opinião das comunidades que vivem na Amazônia, com maneiras muito peculiares de viver. Estamos no início de um novo processo. Os povos da floresta têm direitos. E não se pode impor nada sem levar em consideração opiniões, crenças, tradições dessas comunidades. Hoje, o mais urgente é implantar esse novo paradigma jurídico e um novo modelo de desenvolvimento.
O que é mais urgente na Amazônia: segurança ou sustentabilidade?
Ambos, a violência está intimamente ligada à degradação ambiental. Os dados da CPT mostram isso. A violência é maior nas áreas de pressão do modelo predatório.
A União recorreu contra decisão que determinou urgência na busca de Dom Phillips e Bruno Pereira?
A União recorreu nos casos em que o MPF acionou a Justiça para que bases de proteção etnoterritoriais fossem implantadas. A Terra Indígena Vale do Javari era uma delas.
Entrevista publicada no Correio Brasiliense (Por Carlos Alexandre de Souza, Ana Dubeux e Ana Maria Campos)