Como funciona uma agrofloresta na Amazônia

Infográfico interativo mostra como sistemas agroflorestais reúnem diferentes espécies agrícolas, frutíferas e arbóreas para cultivo e comércio de hortaliças, frutas, sementes e madeira.

Após anos de ausência, os animais selvagens, especialmente as aves, retornaram. O solo melhorou por causa do alto teor de matéria orgânica, e as plantas nativas cresceram mais rápido. “Nós vimos muitas coisas boas, tanto para nossa família quanto para o ambiente. Todo mundo ganha porque os dois se ajudam”, relata Marliane Soares sobre os benefícios da agrofloresta em sua propriedade, na cidade de Juruti, no sudoeste do Pará. Adepta do uso de corte e queima de capoeira para a produção de mandioca, a família Soares adotou um novo projeto: a implantação de um sistema agroflorestal (SAF), que combina árvores nativas e cultivos agrícolas como forma permanente de produção econômica e redução de impactos para a floresta

As agroflorestas foram introduzidas na Amazônia na década de 1970 por imigrantes japoneses que haviam se instalado nos estados do Pará e Amazonas 40 anos antes. 

A história começa com o fungo Fusarium solani f. sp. piperis, que devastou os monocultivos de pimenta-do-reino, uma das principais culturas agrícolas mantidas pelos japoneses no Brasil. Identificado pela primeira vez em 1957, o fungo se espalhou durante os anos seguintes e devastou grandes plantações de pimenta. “Por causa desse problema, os japoneses sentiram a necessidade de diversificar a produção, muito inspirados nos seus quintais e na própria mata”, conta Osvaldo Kato, pesquisador da Embrapa especializado em sistemas agroflorestais, nascido na paraense Tomé-Açu, o primeiro município a receber os imigrantes japoneses no início do século 20.

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Com o passar dos anos, a modalidade baseada na diversidade de cultivos agrícolas se provou mais segura, tanto para a economia quanto para a alimentação das famílias. O sistema foi ganhando corpo, fama e crescendo em número, apesar de ainda serem incipientes frente ao método tradicional de cultivo, que se baseia na monocultura e uso de pesticidas e agrotóxicos. As pesquisas científicas da Embrapa começaram ainda nos anos 1970, mas até hoje nenhuma conseguiu quantificar as unidades de SAF na Amazônia. 

“A gente sempre acreditou nos sistemas agroflorestais. Tem pessoas que acham que não é rentável, mas a Embrapa tem análises que provam a viabilidade econômica. Em conversas com produtores da região, a gente sempre ficava na expectativa de que o SAF ia crescer, mas não nessa velocidade que chegou hoje. Por causa da crise ambiental e climática, estamos tendo uma oportunidade muito grande de avanço desse sistema”, afirma Kato.

A preparação do solo em diferentes cenários

Apesar de emular a composição natural de uma floresta, que é constituída de várias espécies diferentes, o SAF é um sistema planejado e criado a partir de uma lógica de espaçamento e sombreamento, por isso o processo de implantação costuma ser feito em parceria com uma empresa de consultoria especializada – o posterior avanço do sistema para outras áreas da propriedade, se for de interesse do produtor, pode ser feito pela própria família. Assim, são necessárias algumas etapas no processo: conhecimento e mapeamento do local, planejamento do sistema, preparo do solo e aplicação de insumos, plantio de mudas, manutenção e manejo das espécies, capacitação de pessoas, colheita e venda dos produtos no comércio local ou para grandes empresas, via cadeias de valor. 

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Um SAF pode ser criado a partir de três cenários: área degradada, monocultura ou floresta secundária (que já foi manejada por pessoas). Pensando em inserir mais espécies a partir de uma única cultura agrícola, como a mandioca, por exemplo, primeiro é feita uma análise sobre o corte e a retirada de alguns pés e depois o plantio de árvores frutíferas (como cupuaçu e açaí) e arbóreas (para madeira e sementes, como pau-rosa e andiroba). A mesma lógica serve para um SAF criado a partir da floresta secundária. 

As podas são fundamentais para trazer mais luz ao sistema. Partindo de uma floresta, primeiro é preciso selecionar indivíduos para podar, com o objetivo de gerar biomassa para o solo, ter mais luz na área e fazer o plantio das espécies produtivas usando a lógica da sucessão florestal para determinar o espaçamento e a disposição dos indivíduos – o cacau, por exemplo, produz melhor se estiver a meia sombra de uma árvore mais alta. O maior custo de implantação de uma agrofloresta a partir da floresta é com a mão de obra, pois o solo já é rico em matéria orgânica e não carece de muitos insumos. Quando necessário, aplica-se calcário, gesso ou, se a escolha for por insumos mais naturais, carvão e cinzas. 

No caso de uma agrofloresta planejada a partir de uma área degradada, cenário comum na Amazônia por causa da proliferação dos pastos de pecuária, desmatamento e queimadas, o solo precisa de muita biomassa, como folhas e galhos. Para limpar a área, as pessoas usam enxadas, facões, rastelos, trinchas, motosserra (para cortar árvores mortas) e, em casos menos comuns por conta do alto custo, trator. Uma análise do solo indica se será necessário aplicar calcário ou gesso agrícola durante o preparo da terra – esterco curtido e material compostado são ministrados na hora do plantio. Pode ser necessário o uso de máquinas para descompactar e arar a terra. Dependendo da área, a aplicação dos insumos pode ser manual ou mecânica. 

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Em seguida, é feita a adubação verde de fundação, que consiste no plantio de gramíneas e leguminosas de seis meses a um ano antes do início da agrofloresta, sempre que possível. As espécies de adubação verde, como feijão guandu, feijão de porco, crotalária, girassol, nabo forrageiro e aveia preta, têm um ciclo de crescimento curto e atuam na ciclagem de nutrientes no solo. Passado esse período, as plantas são cortadas e usadas como biomassa para cobrir o chão – o solo coberto evita erosão, degradação e emissão de carbono, além de manter a umidade.

Plantio de mudas diversas


Depois de preparado o solo, é hora de plantar as mudas seguindo o desenho das linhas e o distanciamento de cada espécie. O croqui da agrofloresta é feito na etapa de planejamento, quando a família decide quais espécies para fins agrícolas, madeireiros e produtos florestais não madeireiros (como frutas, óleos e castanhas) vai querer manter na propriedade. “A presença de diferentes espécies em uma agrofloresta garante não só a diversificação produtiva, mas também restaura paisagens, cria corredores ecológicos, atrai polinizadores, minimiza efeitos de impactos das mudanças climáticas e faz com que os agricultores tenham resiliência econômica e segurança alimentar”, afirma Mariana Saka, gerente global da Pretaterra, empresa que planeja e desenvolve projetos de agrofloresta de pequena a larga escala.

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Em parceria com o escritório brasileiro da ONG WRI (World Resources Institute), a empresa realizou oficinas com 23 famílias de produtores agrícolas na cidade paraense de Juruti em 2018. Naquele ano, a família Soares, uma das participantes, destinou um hectare de sua pequena propriedade para o plantio de uma agrofloresta – área que já foi expandida. Até então, a família vivia do cultivo de frutas e, principalmente, da mandioca. Para a área de SAF, escolheram as espécies frutíferas de cacau, acerola, cupuaçu, laranja e graviola e as espécies arbóreas (também chamadas de florestais) de andiroba, cedro, cumaru e pau-rosa, destinadas ao corte ou à extração de óleo a partir das sementes. As sementes e mudas das espécies selecionadas são plantadas em linhas seguindo uma lógica de distanciamento, sombreamento e forma de colheita que é própria daquele sistema, pois cada agrofloresta é única.

Nos sistemas implantados em Juruti, as culturas anuais (como milho e feijão), semiperenes (mandioca, por exemplo) ou a pastagem para o gado são inseridas entre as espécies arbóreas de ciclo longo e alto valor, com espaçamento de 10 metros na linha e na entrelinha. Nas linhas entre elas são incluídas três árvores frutíferas tolerantes à sombra moderada, espaçadas dois metros e meio entre si. Por fim, entre as linhas de árvores, está a linha de espécies de serviço, com bananeiras a cada cinco metros e uma linha de plantio de muvuca de sementes, uma técnica de restauração florestal que mistura espécies diversas e pode conter indivíduos de paricá, urucum, taperebá, feijão guandu, milheto, milho, ingá e açaí, entre outros.

O tempo da colheita também varia

Depois de preparado o solo, é hora de plantar as mudas seguindo o desenho das linhas e o distanciamento de cada espécie. O croqui da agrofloresta é feito na etapa de planejamento, quando a família decide quais espécies para fins agrícolas, madeireiros e produtos florestais não madeireiros (como frutas, óleos e castanhas) vai querer manter na propriedade. “A presença de diferentes espécies em uma agrofloresta garante não só a diversificação produtiva, mas também restaura paisagens, cria corredores ecológicos, atrai polinizadores, minimiza efeitos de impactos das mudanças climáticas e faz com que os agricultores tenham resiliência econômica e segurança alimentar”, afirma Mariana Saka, gerente global da Pretaterra, empresa que planeja e desenvolve projetos de agrofloresta de pequena a larga escala.

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Em parceria com o escritório brasileiro da ONG WRI (World Resources Institute), a empresa realizou oficinas com 23 famílias de produtores agrícolas na cidade paraense de Juruti em 2018. Naquele ano, a família Soares, uma das participantes, destinou um hectare de sua pequena propriedade para o plantio de uma agrofloresta – área que já foi expandida. Até então, a família vivia do cultivo de frutas e, principalmente, da mandioca. Para a área de SAF, escolheram as espécies frutíferas de cacau, acerola, cupuaçu, laranja e graviola e as espécies arbóreas (também chamadas de florestais) de andiroba, cedro, cumaru e pau-rosa, destinadas ao corte ou à extração de óleo a partir das sementes. As sementes e mudas das espécies selecionadas são plantadas em linhas seguindo uma lógica de distanciamento, sombreamento e forma de colheita que é própria daquele sistema, pois cada agrofloresta é única.

Nos sistemas implantados em Juruti, as culturas anuais (como milho e feijão), semiperenes (mandioca, por exemplo) ou a pastagem para o gado são inseridas entre as espécies arbóreas de ciclo longo e alto valor, com espaçamento de 10 metros na linha e na entrelinha. Nas linhas entre elas são incluídas três árvores frutíferas tolerantes à sombra moderada, espaçadas dois metros e meio entre si. Por fim, entre as linhas de árvores, está a linha de espécies de serviço, com bananeiras a cada cinco metros e uma linha de plantio de muvuca de sementes, uma técnica de restauração florestal que mistura espécies diversas e pode conter indivíduos de paricá, urucum, taperebá, feijão guandu, milheto, milho, ingá e açaí, entre outros.

O tempo da colheita também varia

Depois de colhida, a mandioca é descascada e segue para outros processos para extração de subprodutos e fabricação das farinhas.ILUSTRAÇÃO FEITA COM BASE NA FOTO DE VALTER ZIANTONI.
Um dos pontos de venda dos produtos agroflorestais é a feira, além de mercados, sistemas de entregas, encomendas e internet.ILUSTRAÇÃO FEITA COM BASE NA FOTO DE VALTER ZIANTONI.

A agregação de valor também pode ocorrer fora da propriedade, quando várias famílias se unem sob a forma de associação. Juntas, conseguem montar uma infraestrutura industrial para transformar frutas em polpa e extrair óleo ou manteiga de sementes. Um exemplo é o de Tomé-Açu, no Pará, onde descendentes de imigrantes japoneses cultivam sistemas agroflorestais desde a década de 1970, consorciando cacau, pimenta do reino, maracujá, açaí, cupuaçu, taperebá e espécies florestais. As 176 famílias associadas da Cooperativa Agrícola Mista de Tomé-Açu (Camta) produzem, na própria fábrica, óleo de andiroba e de maracujá, manteiga de cupuaçu, polpa de frutas e geleias. O açaí cultivado pela Camta possui certificado orgânico e é exportado para Japão, Europa e Estados Unidos.

Dependendo da localização da propriedade, o transporte dos produtos finalizados ou in natura é realizado por barco e depois por caminhão ou moto com carreta. Quando há o acesso direto à estrada, o transporte pode ser feito por veículo motorizado, sem passar pelo rio. Os produtos do SAF podem ser comercializados em uma variedade de pontos de venda: supermercados, feiras urbanas, em cafés da manhã típicos da região preparados sob encomenda, em sistema CSA (Comunidade que Suporta a Agricultura, rede que liga produtores a consumidores), como subprodutos de turismo rural, pela internet ou diretamente para empresas alimentícias, cosméticas e farmacêuticas.

Uma dessas empresas é a Natura, que desenvolve um projeto de SAF de dendê em parceria com a Camta e a Embrapa Amazônia Oriental desde 2007 na região paraense de Bragantina. O objetivo é fornecer informações sobre a introdução da cultura da palma de óleo na composição com cupuaçu, cacau, pimenta-do-reino e espécies florestais, quebrando o paradigma de que o dendê só pode ser cultivado em monocultura. O projeto foi implantado em três propriedades familiares, que já têm retorno financeiro com as espécies plantadas, e passou por duas etapas, estando atualmente na busca de financiamento para expansão a outras famílias e continuação do monitoramento de aspectos de micrometeorologia, como radiação, temperatura, umidade, vento, água e ciclagem de nutrientes.

“O dendê em sistema agroflorestal armazena muito mais carbono no solo do que em monocultivo. Além disso, armazena por mais tempo, tem um valor agregado maior por causa da qualidade do óleo e também gera um fruto de tamanho maior”, relata Alessandro Carioca, pesquisador da Embrapa e coordenador do projeto. Além das três propriedades onde foram instaladas as unidades demonstrativas, com área entre sete e oito hectares cada, hoje a Natura soma 81 hectares de agroflorestas com dendê, em diferentes estágios, na zona Bragantina, em parceria com 20 famílias produtoras. A empresa compra toda a produção de óleo, que é o principal ingrediente utilizado em uma linha de produtos de beleza e higiene em barra. “O modelo está sendo escalado de forma progressiva e ambiciosa para suprir toda a demanda direta da Natura e, ao mesmo tempo, servir de referência como uma solução sustentável para a cadeia produtiva do insumo em outras regiões”, diz Roseli Mello, líder global de pesquisa e desenvolvimento na empresa.

O projeto de agrofloresta com dendê é um dos 27 que a Embrapa coordena atualmente relacionados à SAF. “Estudos mostram que agricultores familiares conseguem ter um retorno financeiro melhor com sistemas diversos do que com a monocultura”, afirma Kato. “A questão da diversidade também é fundamental para combater os impactos das alterações climáticas. Por causa do excesso de chuva na safra passada, o cupuaçu produziu pouco, e o taperebá produziu muito pouco ou nada, dependendo do local. Se não tiver diversidade, o produtor fica refém”, diz Kato.

Os vários benefícios do SAF estão atraindo cada vez mais agricultores, avalia o pesquisador, o que confere à agrofloresta um papel fundamental no combate ao desmatamento. “A proposta da Embrapa de trabalhar com sistemas agroflorestais na borda do arco do desmatamento na Amazônia nasceu com a finalidade de fixar as pessoas para que elas pudessem produzir sem abrir novas áreas.” A conservação da biodiversidade via SAF, explica Kato, também é garantida pelo plantio de múltiplas espécies nativas e o uso dos seus produtos. Contudo, para tornar o sistema agroflorestal a regra – e não a exceção –, é preciso vencer alguns desafios. Segundo o pesquisador, é necessária a criação de políticas públicas, o investimento em tecnologia, o fomento à pesquisa, o acesso a material genético e a disponibilização de assistência técnica aos produtores, com mecanização adaptada a cada grupo. A organização social também é muito importante, com estabelecimento de associações, cadeias de valor e infraestrutura logística. De parte dos produtores e consumidores, cabe ao mercado ser mais exigente quanto à origem e qualidade dos produtos.

Para Mariana Saka, o SAF pode até mesmo sair do campo. “Agrofloresta é mais do que um conceito, é uma filosofia de vida. Se você mora em um apartamento, consegue seguir os princípios agroflorestais tendo um vaso com duas espécies, onde uma faz sombra para a outra, e as duas fazem ciclagem de nutrientes. Você pode ter outro vaso que atrai polinizadores, você pode questionar os fornecedores dos seus alimentos. Seguir essa filosofia impacta a nossa forma de ver e torna nosso consumo mais consciente”, acredita. A tendência é que as cenas de famílias compartilhando uma refeição proveniente da sua agrofloresta se torne um dos pilares do desenvolvimento sustentável na Amazônia, afinal, como diz Kato, “com seus quintais agroflorestais, o agricultor familiar é um guardião da nossa biodiversidade”.

Infográfico por: Miguel Vilela/NatGeo Staff, Francisco Bronze e Vítor Marques/Grande Circular, Thiago Medaglia/Ambiental Media. Fontes: Mariana Saka e Paula Costa/Pretaterra

Texto por Letícia Klein

Arte de Luiz Iria

By emprezaz

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