Por Chico Araújo, de Brasília (*)
Na imensidão da Amazônia, onde a luta contra a malária deveria salvar vidas, um veneno traiçoeiro transformou heróis em vítimas. O DDT (Dicloro-Difenil-Tricloroetano), o temido “pó da morte”, foi a arma escolhida para combater a doença, mas sua herança é um rastro de sofrimento e abandono. Emir Rodrigues Mendonça, pedagogo que ingressou em 1965 na Superintendência de Campanhas de Saúde Pública (Sucam) no Acre como chefe de Operações de Campo, tornou-se uma das vozes mais potentes dessa tragédia. Ele próprio intoxicado, Mendonça lançou em 2019 o livro Vítimas do DDT: Um Caso Real, uma denúncia visceral que expõe a gravidade das sequelas deixadas pelo pesticida. Ele e milhares de “guardas da Sucam” borrifaram o DDT sem proteção, sem imaginar que carregavam nas mãos um veneno que os condenaria a uma morte lenta e dolorosa.
A malária, alvo inicial do DDT, segue como um flagelo global. Em 2023, a Organização Mundial da Saúde (OMS) registrou 263 milhões de casos em 83 países, com 597 mil mortes. No Brasil, 99,98% dos 140.265 casos autóctones de malária em 2023 concentraram-se na Amazônia Legal (Acre, Amazonas, Amapá, Pará, Rondônia, Roraima, Tocantins, Mato Grosso e Maranhão). Em 2024, o país notificou 138.493 casos, uma queda de 1,3%, mas com 43 óbitos, 27% menos que os 63 de 2023. Apesar de o Brasil não figurar entre os países com maior incidência, como na África Subsaariana (80% dos casos globais), a Amazônia enfrenta um ciclo vicioso de desmatamento, garimpo e precariedade sanitária que perpetua a doença. Enquanto isso, os verdadeiros mártires dessa guerra, os trabalhadores da Sucam, pagam o preço mais alto.
O DDT, amplamente usado na Segunda Guerra Mundial e na Guerra do Vietnã para controlar mosquitos, revelou-se um monstro químico. Seus efeitos devastadores — cânceres (pâncreas, mama, próstata), polineuropatia, distúrbios neurológicos, problemas respiratórios e cardíacos — levaram à sua proibição em muitos países nos anos 1970. No Brasil, a comercialização e uso na agricultura foram banidos em 1985, mas, de forma criminosa, o governo permitiu sua aplicação em campanhas de saúde pública até 1998, com o último lote de 3 mil toneladas adquirido em 1991. Milhares de trabalhadores da Sucam foram intoxicados, e cerca de 460 ex-servidores ainda vivos lutam por reparação. No Acre, mais de 240 já morreram, com 55,87% dos óbitos ocorrendo antes dos 60 anos. No Pará, a média é ainda mais cruel: 56,7 anos. O “pó da morte” não perdoa, e suas vítimas, como Raimundo Gomes da Silva, do Acre, enfrentam tumores, falências renais e cardíacas, vivendo na angustiante “fila da morte”. Em Vítimas do DDT: Um Caso Real, Emir Mendonça desnuda essa tragédia com a força de quem sente na pele o veneno. “A cada semana, morre um no Brasil. Estamos à míngua, desamparados”, desabafa ele, com a voz embargada pela indignação e pela dor de ver seus colegas sucumbirem. O livro, lançado em 2019, é um grito de alerta, um documento histórico que escancara a negligência do Estado e a omissão diante de uma crise humanitária.
Os sintomas descritos — irritabilidade, insônia, doenças pulmonares, cardíacas e câncer — são apenas a ponta de um iceberg de sofrimento que o governo se recusa a enxergar, enquanto a Funasa, sucessora da Sucam, nega o nexo entre as doenças e o DDT, mesmo com laudos judiciais apontando o contrário.
Há 17 anos, desde 2008, os intoxicados clamam por um plano de saúde custeado pela União. Audiências públicas, capitaneadas pela ex-deputada Perpétua Almeida (PCdoB-AC), expuseram o drama. Em 2019, o deputado Mauro Nazif (PSB-RO), médico por formação, apresentou a PEC 101/2019, que prevê assistência médica para servidores da Sucam admitidos até 1988, expostos ao DDT. A proposta foi aprovada na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) em 2021, mas segue engavetada, aguardando a criação de uma comissão especial na Câmara dos Deputados para avançar ao plenário. Uma Comissão Nacional, presidida por Joel Ferreira da Silva, de Rondonópolis (MT), luta incansavelmente por avanços. Em 2022, Emir Mendonça esteve em Brasília, reunindo-se com parlamentares como o senador Alan Rick (União-AC) e o então presidente Jair Bolsonaro (PL), mas as promessas não saíram do papel.
O descaso é um veneno tão letal quanto o DDT. No Acre, centenas de vítimas agonizam sem assistência, enquanto o Congresso, absorto em outras prioridades, parece surdo aos seus apelos. Será que essas vidas, marcadas pela coragem de proteger a população, não merecem um mínimo de dignidade? Quantos mais precisarão morrer para que o Brasil encare essa dívida histórica? A Amazônia não é apenas um cenário de luta contra a malária; é um campo de batalha onde os sucanzeiros, esquecidos, ainda lutam pela própria sobrevivência.
Enquanto o “pó da morte” continua a fazer vítimas, o silêncio oficial é ensurdecedor. O livro de Emir Mendonça é mais que uma denúncia; é um chamado à ação, um lembrete de que cada morte é uma mancha na consciência de um país que abandona seus heróis. Até quando o Brasil fechará os olhos para essa tragédia? A resposta está nas mãos de quem pode mudar a história: parlamentares, governantes e a sociedade. Que a voz dos intoxicados ecoe, e que a justiça, tão tardia, finalmente chegue.
(*) Advogado, jornalista e teólogo, com mais de três décadas no jornalismo