Redação Planeta Amazônia
Das 69 terras indígenas na área de influência da BR-319, e monitoradas pelo Observatório BR-319, apenas duas foram homologadas antes de 5 de outubro de 1988. A condição não traz mais segurança aos territórios em caso de vigência do marco temporal, medida que questiona a ocupação de territórios indígenas antes da promulgação da Constituição de 1988. Em todo o Brasil, a situação é preocupante, especialmente em territórios como na rodovia que liga o Amazonas a Rondônia, que são pressionados por obras, invasões e desmatamento. Em se tratando de povos isolados, a situação fica ainda mais grave, porque eles poderiam ser alvo de contato compulsório.
O Projeto de Lei (PL) 490/2007 que trata do marco temporal foi aprovado na Câmara dos Deputados, no dia 30 de maio, e tramita no Senado como PL 2.903/2023. A proposta também está em votação no Supremo Tribunal Federal (STF) para definir se a promulgação da Constituição pode servir como marco temporal para o reconhecimento da ocupação de territórios indígenas. Pelo menos 18 povos indígenas vivem nas 69 terras indígenas da área de influência da BR-319, incluindo ao menos seis povos isolados. Somente as TIs Apurinã Igarapé Tauamirim, do povo Apurinã, em Tapauá (AM), e Karitiana, do povo de mesmo nome, em Porto Velho (RO), foram homologadas em 1986. Sete TIs ainda estão em processo de homologação.
“A tese do marco temporal pode paralisar o processo de homologação destes territórios indígenas e abri-los para a grilagem, garimpo e desmatamento, além de favorecer a instalação de projetos de infraestrutura como construções de rodovias, hidrelétricas e outras obras em terras indígenas sem consulta livre, prévia e informada das comunidades afetadas violando a própria convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Em todos os seus aspectos, o marco temporal é uma ameaça aos povos que já têm contato e aos povos que vivem de forma autônoma”, explica a coordenadora secretária da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), Marciely Ayap Tupari.
Desde que começou a ser construída, em 1972, a BR-319 impactou negativamente as populações indígenas que habitam a zona de influência da rodovia, que se estende por 270 mil km² entre os rios Purus e Madeira. Territórios foram perdidos, modos de vida afetados, entre outros danos. Somente a manutenção da rodovia já causa problemas como desmatamento, grilagem de terras e ramais ilegais que invadem as TIs.
A aprovação do marco temporal pode ampliar as ameaças sofridas pelos povos indígenas da BR-319, especialmente considerando que há muitos territórios que não foram demarcados. “O marco temporal impedirá a demarcação das terras que não forem consideradas efetivamente ocupadas antes de 5 de outubro de 1988, além de trazer como proposta a não expansão dos territórios que já foram demarcados”, explica a consultora da Iniciativa de Governança Territorial do Instituto de Conservação e Desenvolvimento Sustentável da Amazônia (Idesam), Tayane Carvalho.
O marco temporal desconsidera fatores como as violências que os povos indígenas sofreram e que os obrigaram a deixar seus territórios. Esses povos precisaram lutar para recuperar suas terras ancestrais. Além disso, a tese tende a criar insegurança na região da BR-319 relacionada a questões fundiárias. “Principalmente pelo acirramento de conflitos locais de disputa por terras, tendo em vista que a região está dentro do arco do desmatamento, que é uma área de interesse de expansão do agronegócio e de outras atividades”, aponta o indigenista da Operação Amazônia Nativa (Opan), Renato Rocha.
O antropólogo e indigenista Bruno Walter Caporrino, referência na criação de protocolos de consulta de povos indígenas na Amazônia, alerta que a tese do marco temporal é hedionda. “Essa pretensa ‘tese’ é criminosa, hedionda, pois diz que só se deve demarcar terras indígenas dos povos que não foram exterminados ou expulsos de onde estiveram há milênios. O simples fato dessa hedionda proposta ser julgada pelos poderes judiciário e legislativo, no contexto histórico do aumento do desmatamento e do número de ameaças e assassinatos de povos indígenas, impõe a esses povos perseguidos e ameaçados ainda mais insegurança jurídica”, diz. “Considerando-se tudo isso, é de um cinismo tão absurdo a tese do marco temporal que o poder judiciário brasileiro e o poder legislativo deveriam ser julgados por colocar isso em pauta”, defende.
Entenda a tese do marco temporal
Segundo o marco temporal, as terras que estavam desocupadas ou ocupadas por outras pessoas na data de promulgação da Constituição não podem ser demarcadas como terras indígenas. Os territórios passariam a ser considerados propriedade particular ou do Estado. A proposta desconsidera que muitas comunidades indígenas foram expulsas de suas terras durante a ditadura militar e só conseguiram retornar após 1988.
A discussão da tese iniciou em 2009 no julgamento do caso Raposa Serra do Sol, que reconheceu a demarcação das terras indígenas, mas impôs uma série de condicionantes, entre elas, o marco temporal. Com base nessas condicionantes, uma série de demarcações de terras indígenas foram anuladas. Em 2013, o STF determinou que as condicionantes servem apenas para o caso Raposa Terra do Sol – mesmo assim, o argumento continua sendo utilizado juridicamente.
Em 2017, o governo Michel Temer decretou que a Administração Pública Federal passasse a aplicar as 19 condicionantes que o STF estabeleceu no julgamento do caso Raposa Serra do Sol. Atualmente, está em julgamento no STF o Recurso Extraordinário com repercussão geral 1.017.365, que pede a reintegração de posse movido pelo Instituto do Meio a Ambiente de Santa Catarina (IMA) contra a Fundação Nacional do Índio (Funai) e indígenas do povo Xokleng, envolvendo uma área reivindicada da TI Ibirama-Laklanõ. O resultado do julgamento terá seus efeitos estendidos para todos os casos semelhantes que tramitam nas instâncias inferiores do Poder Judiciário – o que pode, em suma, rejeitar de vez a tese do marco temporal.
Já no Legislativo, o PL 490/2007 quer alterar o “Estatuto do Índio” (Lei n° 6.001/1973), propondo que as terras indígenas sejam demarcadas por lei, ou seja, com aprovação do legislativo. Isso representa uma ameaça, visto que há um grande número de deputados que são ruralistas, com interesses no agronegócio que miram as TIs.