Da redação do Planeta Amazônia
A ideia da viagem surgiu em 2018, após uma expedição pioneira ao quase vizinho Pico da Neblina, que resultou em várias descobertas e documentou, pela primeira vez, as plantas e bichos que habitam a montanha mais alta do Brasil (2.995 metros), em 2017. Agora, a meta é chegar a 1.875 metros de altitude. Serra do Imeri, uma cadeia isolada de montanhas no extremo norte do Amazonas. A região é menos alta, porém mais isolada, sem qualquer infraestrutura instalada ou via de acesso preestabelecida.
A missão dos cientistas no topo da montanha é relativamente simples: percorrer a maior variedade possível de ambientes e coletar a maior diversidade possível de plantas e animais, para ter uma ideia do que existe ali. Simples de dizer, difícil de executar. Passar duas semanas no alto de uma serra, no meio da lama, exposto às intempéries da natureza, subindo e descendo trilhas todos os dias (e noites) não é nenhum passeio no parque.
“Foi a expedição mais difícil da minha vida”, diria Rodrigues, ao final da aventura. Aos 69 anos, com um histórico acadêmico e de vida do tamanho da Amazônia, Rodrigues é o ícone da equipe e mentor da expedição, realizada em parceria com o Exército brasileiro e financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), por meio do programa Biota. Foi ele quem concebeu o projeto e selecionou os integrantes da equipe, incluindo especialistas em répteis e anfíbios (herpetologia), mamíferos (mastozoologia), aves (ornitologia), plantas (botânica) e parasitas (parasitologia). Quatorze pesquisadores ao todo, oriundos da USP, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), do Jardim Botânico do Rio de Janeiro (JBRJ) e do Centro Nacional de Pesquisas Científicas da França (CNRS). O Jornal da USP acompanhou toda a expedição, realizada entre 2 e 23 de novembro.
Desde o início havia a expectativa de que muitas espécies novas seriam descobertas, em função do isolamento biogeográfico da região. Em 12 dias de trabalho no campo, os pesquisadores coletaram 285 animais, de 41 espécies, das quais 12 (30%), pelo menos, são inéditas para a ciência (cinco anfíbios, quatro lagartos e três aves). Pode parecer pouco, mas é muita coisa. E isso é só o que os pesquisadores conseguiram identificar de imediato como coisas novas. À medida que o material for sendo examinado em detalhe no laboratório, é muito provável que outras novidades apareçam, tanto do ponto de vista genético quanto morfológico.
“Em que outro lugar você sai para coletar e volta do campo todos os dias com uma espécie nova na mão? Isso aqui é incrível”, anima-se Rodrigues. “Estamos preenchendo uma página em branco na história da biodiversidade brasileira.”
“Aqui é uma Amazônia diferente. Tem menos bichos e menos diversidade, mas tudo que a gente encontra é especial”, diz o ornitólogo Luís Fábio Silveira, do Museu de Zoologia (MZ) da USP. Auxiliado pelo biólogo Igor Alvarenga, ele coletou 21 espécies de aves na expedição, das quais três, pelo menos, são inéditas para a ciência — além de outros registros de destaque, como um tucaninho-verde (Aulacorhynchus whitelianus), nunca antes capturado no Brasil. Outras 46 espécies tiveram sua ocorrência registrada por meio de canto ou avistamentos.
Tão importante quanto o número de novas espécies, segundo os pesquisadores, é o fato de que grande parte das plantas e animais coletados na expedição parece ser exclusiva (ou endêmica, na linguagem técnica) dessas formações montanhosas do norte da Amazônia, que incluem o Pico da Neblina, o Monte Roraima e outros maciços tabulares (chamados tepuis), que se espalham pelo norte do Brasil, sul da Venezuela e oeste da Guiana. Ou seja, são espécies que só existem no topo das montanhas e chapadas dessa região, conhecida como Pantepui.
Cravada na fronteira do Brasil com a Venezuela, a Serra do Imeri fica no extremo sul dessa região montanhosa, guardada em território brasileiro por uma dupla camada de áreas protegidas: a Terra Indígena Yanomami e o Parque Nacional do Pico da Neblina.
“O nível de endemismo aqui é muito alto. Essa é a grande diferença”, destrincha o professor Taran Grant, também do IB-USP, especialista em anfíbios. Como comparativo, antes de embarcar para as montanhas, os pesquisadores passaram uma noite coletando répteis e anfíbios no entorno do aeroporto de Santa Isabel do Rio Negro, 90 quilômetros (km) ao sul da Serra do Imeri, que o Exército utilizou como base de apoio para a expedição. Em três horas de trabalho tranquilo, sem muito esforço, coletaram 45 bichos, de 20 espécies diferentes. Já na Serra do Imeri, foram necessários cinco dias de trabalho intenso para coletar esse mesmo número de animais, com o uso de dezenas de armadilhas e dezenas de horas de busca ativa na natureza. No final, voltaram para casa com 160 bichos, de pelo menos 12 espécies.
A diferença fundamental, conforme anotou Grant, é que nenhuma das 20 espécies coletadas em Santa Isabel do Rio Negro era nova, enquanto que quase todas as 12 espécies recolhidas na Serra do Imeri são inéditas (quatro lagartos e cinco anfíbios, pelo menos), além de serem todas endêmicas da região dos tepuis, segundo Rodrigues.
Apesar de estarem fisicamente conectadas com as florestas abaixo delas, essas formações montanhosas abrigam ambientes altamente diferenciados do restante da Amazônia. São como ilhas que se elevam sobre um oceano de floresta, com condições ambientais próprias e pouca conectividade entre elas — condições que favorecem o isolamento biogeográfico e, consequentemente, a evolução de uma biodiversidade própria, exclusiva desses locais. A altitude é um fator determinante: quanto maior a elevação, menor a temperatura e, consequentemente, menor a quantidade e a diversidade de seres vivos capazes de sobreviver ali.
Assim como ocorre nas ilhas oceânicas, portanto, é de se esperar que essas montanhas florestais tenham uma biodiversidade mais restrita e altamente endêmica, comparativamente ao resto da Amazônia. Várias das espécies coletadas na Serra do Imeri são parecidas, mas não necessariamente idênticas.
Identificar essas espécies é apenas o primeiro passo. Em última instância, o que os pesquisadores buscam é justamente entender como cada uma delas se insere coletivamente num contexto histórico de evolução da biodiversidade da Amazônia, incluindo suas relações no tempo e no espaço com a biodiversidade dos Andes, da Mata Atlântica e outros biomas da América do Sul.
As técnicas de coleta são diferentes para cada grupo, mas todas envolvem uma combinação do uso de armadilhas com busca ativa na natureza — quando os pesquisadores saem procurando pelos bichos no meio da mata. Para répteis e anfíbios, por exemplo, as armadilhas mais clássicas são as do tipo pitfall, que nada mais são do que baldes enterrados no solo, em que os bichos caem e não conseguem mais sair. Três das quatro espécies novas de lagarto da Serra do Imeri tiveram indivíduos coletados dessa forma, enquanto que os novos sapinhos e pererecas foram todos encontrados por meio de busca ativa.
Cada espécime coletado recebe um “número de campo”, que passa a funcionar como um RG daquele bicho, acompanhado de anotações sobre onde, como e quando ele foi capturado.
Outro procedimento-padrão introduzido nessa expedição foi a coleta de amostras de sangue dos animais capturados, para a detecção de tripanossomatídeos — família de protozoários que inclui o Trypanosoma cruzi, causador da doença de Chagas, e o Trypanosoma brucei, da doença do sono. De um total de 240 amostras, 14 haviam testado positivo para tripanossoma até a publicação desta reportagem, extraídas de mamíferos, aves e anfíbios.
Assim como no caso de seus hospedeiros, é praticamente certo que muitos desses parasitas representam espécies novas, segundo o pesquisador Bruno Fermino, pós-doutorando no Departamento de Parasitologia do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP, responsável pela coleta e análise das amostras. O conhecimento dessa biodiversidade de parasitas selvagens tem importância sanitária nacional, visto que esses tripanossomas podem vir a infectar animais de produção (como frangos) e até seres humanos no futuro, à medida que o homem avança sobre a floresta. “Aí a gente não tem ideia de qual doença eles poderiam causar”, alerta Fermino.
Ainda serão necessários muitos anos de pesquisa para analisar e descrever todo o material que foi trazido da Serra do Imeri, mas ninguém tem dúvidas de que a expedição foi um sucesso.
“Sucesso absoluto”, comemora Rodrigues. “A gente ganhou muito com essa expedição.” Não só do ponto de vista do conhecimento científico, diz ele, mas também de fortalecimento da soberania nacional. Pela primeira vez, juntando o que foi coletado no Imeri e no Pico da Neblina, o Brasil tem material biológico próprio e “independência intelectual” para pesquisar a biodiversidade dessas terras altas da Amazônia, que até agora era de domínio quase que exclusivo de outros países. “Essa independência intelectual nos dá soberania, e isso é muito importante”, conclui Rodrigues.
Todo o material coletado na expedição foi depositado nas coleções do IB e do MZ da USP. No caso da botânica, duplicatas de todas as plantas ainda serão enviadas, também, para os herbários do Jardim Botânico do Rio de Janeiro e do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), em Manaus.