Redação Planeta Amazônia
Quando o assunto é dinheiro, é preciso muita responsabilidade – não só por parte de quem faz um empréstimo, contrata um seguro ou escolhe um investimento, mas também das organizações financeiras responsáveis por essas transações. Esse cuidado ajudaria a não viabilizar atividades de empresas e produtores rurais que contribuem para o desmatamento ilegal, violam direitos humanos ou que causam mudanças climáticas, levando a desastres como o do Rio Grande do Sul este ano.
Para evitar esse tipo de situação – e dar clareza ao setor produtivo sobre os critérios climáticos e socioambientais para concessão de crédito, realização de investimentos e cobertura de riscos por instituições financeiras –, um grupo de 11 organizações da sociedade civil (inclusive associações empresariais), comprometidas com a sustentabilidade, está lançando uma Nota Técnica que pede a edição de um Decreto Federal que trate da gestão de riscos climáticos e socioambientais no setor financeiro. Além dessas organizações que construíram e debateram o conteúdo do documento, o Instituto Igarapé também manifestou apoio à iniciativa, que tem como objetivo propor o alinhamento das regras para crédito, investimentos e seguros. A Nota Técnica já foi entregue à Marina Silva, ministra do Meio Ambiente, e à Advocacia-Geral da União, bem como está sendo apresentada e debatida com o Ministério da Fazenda e os quatro reguladores financeiros (BC, CVM, SUSEP e PREVIC), além de outros Ministérios relevantes.
“Os reguladores financeiros brasileiros estão entre os primeiros no mundo a incorporar essas questões em suas normas prudenciais, mas essas iniciativas estão se desenvolvendo de forma heterogênea. O que buscamos é que estejam alinhadas, para poderem ser mais efetivas”, diz Luciane Moessa, Diretora Executiva e Técnica da Associação Soluções Inclusivas Sustentáveis (SIS), entidade que liderou a iniciativa.
As instituições pedem no documento que as regulações bancárias sobre gestão de riscos socioambientais e climáticos sejam muito mais claras do que são hoje, porque todas as operações de crédito com setores de risco precisam de exigências adequadas nesses temas. Hoje, a clareza existe somente para o crédito rural , fazendo com que muitas transações não sejam avaliadas ou que as diligências para identificação dos riscos sejam insuficientes ou ainda que a identificação de riscos não se reflita no processo decisório.
E não apenas as operações de crédito , mas também as que ocorrem no mercado de capitais – que é a principal fonte de recursos financeiros para grandes empresas –, os produtos de seguros e de previdência complementar (que também injetam recursos no mercado de capitais) precisam levar em conta esses temas com a devida profundidade. Na prática, as regulações bancárias estão claramente à frente das demais, o que cria o risco de “arbitragem regulatória” – procedimento que permite a um empreendedor escolher o tipo de regulação a que suas operações de captação de recursos estariam submetidas. Dessa forma, empresas que não têm bom desempenho socioambiental e climático buscam se financiar em fontes que não adotam critérios dessa natureza.
“Esse movimento é bem evidente no agronegócio, que se financia cada vez mais por LCAs (Letras de Crédito do Agronegócio), CRAs (Certificados de Recebimento do Agronegócio) e FIAGROs (fundos de investimentos focados no agronegócio). Já as empresas que cumprem as normas socioambientais e têm bom desempenho recebem na maioria das vezes tratamento similar às que não fazem isso. É por conta desse tipo de incoerência que propomos esse alinhamento, pois não adianta um regulador financeiro fazer o dever de casa e outros não, deixando brechas para que empresas com desempenho insustentável continuem sendo financiadas e recebendo cobertura de seguros”, completa Luciane Moessa.
“A padronização e harmonização das diligências socioambientais para todas as instituições financeiras é imprescindível para a transição ecológica da economia brasileira, para o cumprimento das metas climáticas internacionais acordadas pelo Brasil, e mesmo para o atendimento pleno ao que dispõe a Constituição Federal, de modo a fazer valer o meio ambiente enquanto direito de todos. O Brasil pode e deve ser pioneiro mundialmente na adoção desse passo, o qual, esperamos, seja apresentado na COP 30 em Belém como um exemplo já implementado, que poderá então ser seguido pelos demais países.”, destaca Marcos Wortmann, do Instituto Democracia e Sustentabilidade.
Como a maioria das empresas se relaciona com mais de um segmento do setor financeiro, havendo muitas que se relacionam com todos, há riscos dessa arbitragem regulatória se os padrões climáticos e socioambientais forem distintos.
O documento ainda pede a criação de uma resolução do Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA) sobre transparência online de dados de natureza ambiental para uso do setor financeiro e outras partes interessadas.
“Apesar de existirem critérios socioambientais que devem ser observados pelos bancos antes da concessão de crédito rural ainda existem lacunas importantes que evidenciam a necessidade de aprimoramento também da regulação do crédito rural” afirma Cristiane Mazzetti, porta-voz do Greenpeace Brasil, organização que lançou em abril de 2024 o relatório Bancando a Extinção, bancos e investidores como sócios no desmatamento, que explora essas lacunas e faz recomendações para endereçá-las. “Hoje, por exemplo, se um produtor desmatou ilegalmente mas sua fazenda não apresenta embargo do órgão ambiental, ela está apta a receber crédito rural. Com as lacunas supridas, o crédito rural pode ser usado como uma referência ideal para as demais regulações. É urgente que recursos financeiros parem de ser destinados àqueles que desmatam e fomentam a crise da biodiversidade e a emergência climática, seja via crédito rural, crédito convencional, via investimento ou seguros”, completa Cristiane.
Realidade do mercado
O que se vê no mercado financeiro são níveis de exigência bem distintos. Ao obter financiamento via crédito bancário, uma empresa ou produtor rural está sujeito atualmente a um nível de diligências por parte do banco ou outra instituição que lhe conceda crédito correspondente ao exigido pela regulação do Banco Central. Essa mesma empresa ou produtor estará sujeito a um nível de exigências diferente ao contratar seguros. Nesse caso, aplicam-se as normas da SUSEP. O seguro agrícola segue normas menos abrangentes em matéria socioambiental e climática do que a regulação do crédito rural, por exemplo. Já um imóvel rural que tenha área embargada pelo IBAMA ou um produtor rural inscrito na chamada “lista suja do trabalho escravo” não tem acesso a crédito rural, mas pode ter acesso a seguros, inclusive à subvenção federal no pagamento dos prêmios de seguro rural, que paga boa parte dos prêmios do seguro diretamente às seguradoras.
Se esse produtor rural optar por títulos de crédito e se financiar via mercado de capitais vai lidar com um nível de diligências em matéria socioambiental e climática substancialmente inferior à do mercado bancário. No mercado de capitais, há exemplos até de produtos financeiros com rótulo “verde” (títulos verdes) que financiaram empresas que possuem fornecedores diretos envolvidos em graves ilícitos.
“Regular e regrar o mercado financeiro é responsabilidade das instituições de Estado, especialmente do governo federal quando o crédito liberado pelos bancos ou instituições financeiras está sob risco de financiar crimes ambientais, trabalhistas ou violações de direitos humanos. O decreto proposto vem no sentido de reforçar e dar mais efetividade às medidas já adotadas pelo Banco Central”, afirma Caio Magri, diretor-presidente do Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social. Assinam o documento as seguintes organizações: Associação Soluções Inclusivas Sustentáveis (SIS), Instituto Democracia e Sustentabilidade (IDS), Observatório do Clima, Instituto Socioambiental (ISA), Instituto Ethos, Conectas Direitos Humanos, Greenpeace, Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM), Instituto de Direito Coletivo (IDC), Instituto Cerrado do Brasil e Associação Brasileira dos Membros do Ministério Público de Meio Ambiente (ABRAMPA).