Redação Planeta Amazônia
O marco temporal das terras indígenas e outras medidas inseridas no PL 2903/2023 tratam muito mais da visão de civilização e do futuro que o Brasil quer para si, do que apenas da aprovação de uma nova norma. É o que avalia André Guimarães, diretor executivo do IPAM (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia).
“Estamos discutindo uma visão de civilização, não apenas uma lei. Queremos seguir com o modelo de expansão ilimitada da fronteira agrícola, mesmo com os milhões de hectares já abertos e degradados no Brasil? Ou queremos uma visão mais contemporânea do uso da terra, onde a preservação está integrada à produção agropecuária?”, questiona Guimarães.
De acordo com o Relatório Anual do Desmatamento, mais de 2 milhões de hectares foram desmatados no Brasil em 2022, um aumento de 22,3% em relação à área desmatada em 2021. A pressão agropecuária responde por 95,7% das supressões de vegetação nativa, sendo que mais de 90% desse desmatamento ocorreu na Amazônia e no Cerrado. De toda a área desmatada no país em 2022, mais de 99% teve indícios de irregularidade.
“Diante dos extremos climáticos que estamos vivendo, o Brasil é um dos poucos países do mundo que pode se proteger um pouco desse efeitos. E essa proteção, em especial no que diz respeito à temperatura e umidade, são as nossas florestas. Discutir leis e normas que não assegurem a preservação é prejudicial para as gerações futuras”, diz o diretor.
Em nota, o IPAM resume dados de duas notas técnicas divulgadas em junho e em setembro, e de nota técnica publicada em parceria com a Coiab (Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira) em janeiro, para apresentar os riscos que o marco temporal das terras indígenas e o PL 2903 oferecem à população.
Eis os riscos calculados:
Mais desmatamento: acréscimo da ordem de 23 a 55 milhões de hectares desmatados na Amazônia Legal nos próximos anos
Pela proteção exercida por povos originários, terras indígenas têm as menores taxas de desmatamento (<2%) se comparadas ao entorno (>30%).
Mais emissão de gases do efeito estufa: a pressão nas terras indígenas poderia resultar na emissão de 7,6 a 18,7 bilhões de toneladas de dióxido de carbono
Com a segurança jurídica territorial impactada, e sem o manejo indígena, atividades predatórias poderiam levar à emissão equivalente a um período entre 5 e 14 anos de emissões brasileiras.
Mais calor: terras indígenas são o “ar-condicionado” do Brasil. Sem essas áreas contribuindo com o equilíbrio climático, uma bola de neve de efeitos em cadeia criaria condições ainda mais extremas (e quentes) para a existência
Esse risco, por si só, já seria uma consequência dos listados anteriormente, uma vez que o desmatamento libera gases superaquecedores da atmosfera e extingue recursos naturais capazes de regular o clima – árvores, por exemplo, que na floresta tropical multiplicam umidade e amenizam a temperatura.
As terras indígenas têm até 5°C a menos na temperatura média anual se comparadas a uma vizinhança dominada por monocultura. É o caso do Território Indígena do Xingu. Na prática, se um dia o entorno bate os 40°C, dentro da terra indígena a temperatura se mantém na faixa dos 29°C. O efeito se repete em toda a Amazônia Legal: áreas indígenas na região têm 2°C a menos na média anual.
Menos chuva: em terras indígenas, a evapotranspiração – “chuva às avessas” – é quase três vezes maior do que em áreas desmatadas
A floresta viva e saudável no Território Indígena do Xingu consegue bombear até 1.440 milímetros de água (por metro quadrado) ao ano para a atmosfera – no entorno, onde a vegetação foi desmatada, isso não passa de 540 milímetros.
Na Amazônia Legal, a evapotranspiração é 9% maior em áreas ancestralmente ocupadas por povos indígenas em relação a áreas não protegidas. A porcentagem pode parecer pequena, mas as dimensões que representa são suficientes para alterar o regime de chuva.
Mais violência: o Brasil é o país com mais povos indígenas isolados da América do Sul. Expor as terras indígenas da Amazônia é colocar em xeque a vida e a história de povos inteiros
Terras indígenas com presença de povos isolados, ou povos livres, representam 62% da área de todas as terras indígenas da Amazônia brasileira e são as mais ameaçadas.
De 2019 a 2021, seis das 10 terras indígenas com maior aumento no desmatamento tinham presença de povos isolados, e metade das exploradas pelo garimpo também são habitadas por essas pessoas. Cerca de 34% dessas áreas com isolados ainda não tiveram seus processos de demarcação concluídos.
A Convenção n° 169 da Organização Internacional do Trabalho, da qual o Brasil é signatário, e a legislação nacional reconhecem a autonomia dos povos indígenas em manter e fortalecer seus modos de vida e a gestão de seus territórios.
Além de expor essas áreas à exploração, sancionar o PL 2903 implicaria em descumprir, por exemplo, o direito à consulta livre, prévia e informada a povos indígenas sobre empreendimentos que possam ter influência na terra indígena ou no entorno.
Distanciamento das metas climáticas: “Se o Brasil quiser ser uma potência climática, deve respeitar os direitos dos povos indígenas”, concluem pesquisadores
Os riscos associados à perda de direitos indígenas se traduzem em ameaças ao futuro socioeconômico e ambiental do país.
Sem políticas específicas, com garantia aos direitos territoriais e originários, bem como adequadas ao momento da humanidade, não será possível alcançar as metas brasileiras de redução de emissões, tampouco o compromisso de desmatamento zero até 2030.