Rosane Chene (*)
Era agosto de 2019, por volta das 15h30, o céu do país todo ficou encoberto, transformando o que era para ser dia em noite. Todos sem entender o que estava acontecendo. Agora, novembro de 2023, calor extremo com sensação térmica de até 60ºC em alguns estados. Chuvas torrenciais com ventos que ultrapassavam 100km/h. Infelizmente, esses acontecimentos têm como causa uma resposta que já é praticamente automática: crise climática.
Há pouco mais de 30 anos, com o início na ECO-92, que posteriormente culminou na COP (Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas), as primeiras agendas globais sobre mudanças climáticas eram construídas. Empresas e países têm buscado formas de reduzir as emissões de gases do efeito estufa para diminuir o ritmo do aquecimento global.
Entretanto, o alarde justo e necessário sobre as mudanças climáticas demanda uma reflexão que não pode ficar encoberta como o céu cheio de fumaça daquele agosto de 2019. Para alguns menos imediata, ela vai além dos fenômenos da natureza e está muito mais relacionada à distribuição de renda. Uma parcela da população ainda é esquecida, tanto pelo setor público quanto pelo privado, ao falarmos nos impactos da ação do homem no planeta: os mais pobres.
No contexto brasileiro de marginalização social, essa população compõe cerca de 16 milhões de pessoas que vivem nas mais de 11.403 favelas que se estendem por todo o território nacional, segundo dados do Censo Demográfico de 2022, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). É nas favelas e periferias do nosso país que a crise climática não são apenas “eventos”, mas uma constante.
Sem áreas verdes próximas de casa, com acesso restrito a redes de esgoto – só em São Paulo, 43 mil pessoas vivem sem um banheiro em suas casas –, com problemas crônicos de acesso a moradia, abastecimento de água e limpeza urbana, as famílias periféricas, em sua maioria comandadas por mulheres, negras e mães solo, têm a saúde, segurança e bem-estar diretamente impactados pelas mudanças climáticas.
Mesmo as queimadas ocasionadas pelo desmatamento ilegal na Amazônia, que encobriram diversos estados do país em 2019, dão um exemplo de como as populações mais vulneráveis são potencialmente mais afetadas por um problema que é de todas as pessoas. Ao retornar em forma de fumaça e fuligem para as periferias, as queimadas contribuem para o desenvolvimento de doenças respiratórias que, somadas às longas filas nos serviços públicos, se tornam problemas graves para essas populações.
Por sua vez, o calor extremo que vivenciamos nas últimas semanas transforma os “barracos” em verdadeiros fornos, por ainda utilizarem materiais mais baratos que contribuem para a retenção do calor no recinto. Sem mencionar a junção do calor com a falta de abastecimento contínuo de água em algumas regiões, que obriga essas famílias a armazenar água em garrafas PET para beber.
Os dias de frio e chuva também não são amenos em termos de problemas climáticos acentuados. Além dos alagamentos e queda de encostas que drasticamente vitimam pessoas, os danos persistem com regiões periféricas inteiras que são “esquecidas” sem água e luz por semanas.
Sabemos que todos esses impactos ambientais que recaem diretamente sobre a população periférica são fruto de séculos de exploração de recursos naturais, por parte de industriais e governos, em busca majoritariamente de avanços econômicos. Nessa matemática do acúmulo, as parcelas mais privilegiadas da sociedade são também as mais beneficiadas o que acaba aumentando o abismo da desigualdade social. Isso destinou à população mais pobre um retrato doloroso de desigualdade, uma realidade que infelizmente acompanho diariamente com as famílias que atendemos na ONG PAC.
Nas últimas COPs, percebemos alguma evolução diante do tema, como a criação, em 2015, da Agenda 2030 – Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), que tem como premissa aliar justiça social à proteção do meio ambiente. Os 17 ODS envolvem uma agenda global assinada por 193 países, que assumem o compromisso com um crescimento sustentável, junto às frentes socioambientais, econômicas e gênero. Diante disso, vemos empresas e governos em um movimento ainda tímido e muitas vezes mascarado em greenwashing para atrelar suas metas às agendas ODS e assumir a pauta ESG para si.
Entre as guias dos ODS, temos a “educação de qualidade”, que considero uma das principais ferramentas para o enfrentamento da crise climática. Explico: investir na educação significa promover oportunidades e, mais ainda, atuar para a conscientização sobre a sustentabilidade desde a infância. Além disso, é por meio do incentivo à educação que podemos pensar em novas tecnologias sustentáveis que tenham como pressuposto o uso de materiais de baixo custo e que de fato atendam a populações mais vulneráveis.
O impacto positivo do investimento na educação e formação profissional vai além, especialmente quando pensamos nas periferias. Contribuir com o desenvolvimento pessoal e profissional desses novos talentos significa promover uma mudança de vida estrutural, já que esse jovem retornará para a comunidade esses conhecimentos e se tornará espelho para os demais.
A verdade é que líderes, sejam de governos ou empresas, precisam compreender que não podemos tratar a agenda ESG focando apenas na frente ambiental e esquecendo o social, ambas são complementares. É necessário encarar o investimento na educação como um compromisso que deve ser assumido desde já.
Para que isso ocorra, é fundamental a construção de políticas públicas de incentivo, em que empresas apoiem projetos educacionais, a partir da percepção de sua urgência e de que não há possibilidade de um futuro sem impactos da crise climática sem investir na educação.
O que não dá mais é para esperar, o planeta já se cansou faz tempo. Do contrário, continuaremos remando contra a maré, em uma conta que só cresce a cada dia e continua sendo paga por quem tem menos.
(*)Empreendedora social, co-fundadora e CEO da ONG Projeto Amigos da Comunidade (PAC)