Cassandra Castro
O apogeu e declínio do chamado Ciclo da Borracha (entre 1880 e 1910), geralmente lembrado quando contamos a história do estado do Amazonas, também teve crucial importância no surgimento de um projeto ousado em outra parte da Amazônia. Um empreendimento construído com muito sangue, suor, lágrimas e vidas de milhares de pessoas: a estrada de Ferro Madeira-Mamoré ( EFMM).
O surgimento de cidades como Porto Velho e Guajará-Mirim, em Rondônia, está estritamente relacionado à criação da ferrovia. A Madeira Mamoré nasceu como uma das contrapartidas do governo brasileiro à Bolívia nos termos do Tratado de Petrópolis, assinado em 1903 entre os dois países para que o Brasil tivesse o direito de anexar as terras do atual estado do Acre que pertenciam originalmente à Bolívia. A disputa pela área era justificada pela exploração do látex retirado da seringueira, matéria-prima da borracha, produto que ganhava importância estratégica em todo o mundo.
A construção da ferrovia veio ao encontro da necessidade tanto da Bolívia quanto do Brasil de ter uma alternativa para escoar a produção de borracha e de outras mercadorias até um ponto onde elas pudessem ser embarcadas para exportação.
Com 366 km de extensão que ligam Porto Velho a Guajará-Mirim, em Rondônia, a Estrada de Ferro Madeira-Mamoré foi a 15ª ferrovia a ser construída no Brasil e também a primeira grande obra de engenharia civil estadunidense fora dos Estados Unidos da América. A história da sua construção é repleta de episódios que incluem duas tentativas fracassadas de início da obra, doenças tropicais que mataram muitos operários, apogeu, decadência e descaso do poder público.
A Madeira-Mamoré levou 5 anos para ser construída ( de 1907 a 1912) e mesmo com todas as dificuldades enfrentadas para que a ferrovia saísse do papel, ela foi inaugurada em 1º de agosto de 1912, uma vitória não só do empreendedor estadunidense Percival Farquhar e engenheiros envolvidos na obra, mas também, dos milhares de trabalhadores que vieram de várias partes do mundo para encarar o desafio de se embrenharem na selva Amazônica e fazerem surgir uma estrada de ferro.
A decadência e o abandono
Mesmo tendo importância estratégica para a economia brasileira, principalmente durante o apogeu do ciclo da borracha, após 54 anos de atividades, a Estrada de Ferro Madeira-Mamoré foi desativada em 1966 por determinação do presidente da República Castelo Branco. No lugar dela, foram construídas duas rodovias, as BR’s 425 e 364, a fim de que não se configurasse rompimento ou descumprimento do acordo de Petrópolis.
Na década de 1970, a ferrovia começou a ser abandonada, inclusive tendo parte do acervo vendido como sucata para a Companhia Siderúrgica de Mogi das Cruzes, em São Paulo, sem falar no vandalismo que atingiu em cheio a obra que teve várias partes de seu acervo furtadas e com destinação incerta. Esses episódios estavam, aos poucos, destruíndo a história da Madeira-Mamoré. Em 1981, a ferrovia voltou a operar num trecho de 7 quilômetros apenas para fins turísticos, mas, acabou tendo as atividades paralisadas de vez no ano 2000.
Memórias e saudades
A Estrada de Ferro Madeira-Mamoré é objeto de amor e devoção até hoje entre pessoas que viveram a experiência de trabalharem nela, como a aposentada Maria Auxiliadora. Com quase 90 anos de idade, Dona Maria faz uma verdadeira viagem no tempo quando relembra do período em que trabalhou na área administrativa da EFMM. Ela conta como recebeu o convite. “Meu contato com a EFMM foi por meio do meu padrinho de casamento chamado Benedito Corrêa Lima. Um dia, ele me perguntou se eu queria trabalhar, eu falei que queria, mas não tinha conseguido emprego ainda, aí ele disse: não, mas você vai trabalhar comigo, aí eu fui ser secretária dele na Madeira-Mamoré”, conta.
Dona Maria lembra até o dia em que iniciou na empresa: 6 de junho de 1953. “ Eu entrei como datilógrafa, depois passei para escriturária e me aposentei como oficial de administração”, relembra. Ela conta que quando iniciou na EFMM ainda não havia mulheres trabalhando lá, elas foram chegando aos poucos e, com o passar do tempo, também iam sendo transferidas para outras cidades. Dona Maria disse que chegou um momento em que ela era a única mulher trabalhando com 952 homens na ferrovia.
As lembranças que Dona Maria guarda com carinho são as do movimento de trens todos os dias, as composições saindo de Porto Velho até Abunã e de lá para Guajará-Mirim. Ela conta que o trem era o único meio de transporte que existia em Porto Velho e destaca que a estrada de ferro foi quem trouxe progresso para o ainda novo estado de Rondônia.
Falar da Madeira-Mamoré para Dona Maria desperta muitas recordações e saudades. “Sinto muitas saudades, se eu tivesse condições e fosse mais nova, eu ainda estaria trabalhando lá mas, infelizmente, vou fazer 90 anos e não tenho mais condições, fui aposentada e não tenho mais condições de trabalhar”, desabafa.
A oficial de administração aposentada olha as atuais condições do que um dia foi a estrada de ferro e sente tristeza. “Ela podia estar funcionando até hoje porque para isso tem trilho até Guajará-Mirim, então, a Madeira-Mamoré podia estar funcionando. O mais difícil foi construí-la, hoje em dia está lá, é só recuperar. Ela tinha que estar funcionando até hoje porque é um patrimônio nosso, patrimônio de Rondônia”, afirma.
Outro que morre de saudades de ouvir o apito da locomotiva e de toda a movimentação em torno da ferrovia é o Seu Manuel Paixão. Com 78 anos, ele vem de uma família de ferroviários, originária do Ceará. Seu Manuel conta que começou a trabalhar na EFMM com 15 anos, seguindo os passos do pai que já atuava na estrada de ferro, no km 154, como capataz. Ele lembra que à época, não tinha quase ninguém trabalhando e o que não faltava era serviço. “Tinha que roçar na lateral dos trilhos, capinar, fazer vala, era muito trabalho”, relembra.
Mesmo com a rotina pesada e dura, Manuel sente saudades e fala que era um tempo muito bom. Olhando para a situação da estrada de ferro hoje, ele acha que as autoridades deveriam ter um olhar mais atento para este patrimônio histórico. “Ela só tá mais bonita agora porque nós, ferroviários antigos, nós vivíamos lá, cuidando de lá”, desabafa.
Luta e resistência
Os anos de descaso com a Estrada de Ferro Madeira-Mamoré despertaram a indignação e motivaram a Associação de Ferroviários da EFMM a lutar para que o legado da ferrovia não desapareça completamente. De acordo com o presidente da Associação, George Teles de Menezes, também conhecido como “Carioca”, todas as providências que vêm sendo tomadas relacionadas à EFMM foram desencadeadas após muita insistência e mobilização. Numa articulação da Associação dos Ferroviários juntamente com os Ministérios Públicos Estadual e Federal, foi impetrada uma ação civil pública para o processo de revitalização do complexo ferroviário. O processo começou em 2015, o despacho saiu em 2018 e no ano seguinte teve início a obra que tinha um prazo inicial de conclusão de 1 ano e 8 meses.
George Teles aponta que o quadro de abandono da ferrovia é resultado do desleixo dos governos tanto estadual quanto municipal. As providências só começaram a ser tomadas pelas partes citada como réus na ação em cumprimento a decisões judiciais: União, SPU(Superintendência do Patrimônio da União), Iphan, Ibama, Santo Antônio Energia, Estado de Rondônia e Prefeitura de Porto Velho. Além das medidas na esfera judicial, a Associação dos Rodoviários também entrou em contato com o governo federal para pedir o tombamento da construção conhecida como Casarão dos Ingleses e também da igreja de Santo Antônio, ambas edificações que também fazem parte da história da EFMM e do estado de Rondônia. Outra reivindicação que deve ser encaminhada aos órgãos competentes, segundo George Telles, é o pedido de tombamento federal do km 8 da ferrovia até a cidade de Guajará-Mirim.
A Superintendente do Iphan Rondônia, Alyne Mayra Rufino dos Santos, explica como andam os trabalhos do Instituto relacionados à EFMM. Em relação ao pedido de tombamento de trechos da ferrovia, ela afirma que ele foi realizado um pouco antes da pandemia de Covid-19 e devido a uma portaria do governo federal, todos os prazos de estudos referentes a tombamentos foram suspensos e o retorno só aconteceu após a suspensão da portaria, no segundo semestre de 2021. Alyne Rufino explica que a Estrada de Ferro Madeira-Mamoré já possui tombamento estadual, o que já a credencia para captação de recursos e investimentos.” Se já existe um tombamento estadual, o que se precisa é que as três esferas, municipal, estadual e federal trabalhem juntas para essa gestão”, enfatiza a superintendente do Iphan/RO.
Alyne Rufino também explica que a estrada de ferro é patrimônio cultural nacional ( o trecho da estrada de ferro do complexo ferroviário, as três caixas d’água, os 8 km da Madeira-Mamoré e o cemitério da Candelária são considerados patrimônio cultural tombado pelo governo federal. O restante continua sendo tombado pelo estado, o que são tombamentos equivalentes.
A Superintendente do Iphan afirma que foi solicitada pela Associação dos Ferroviários, a extensão do tombamento da estrada de ferro, processo que é chamado de rerratificação, do km 8 até o km 366, contemplando toda a extensão do percurso original da ferrovia. Segundo ela, existe apenas um servidor para realizar esta demanda e o processo está ainda sendo montado.
Complexo ferroviário
Toda a saga para tentar recuperar o que ainda existe da história da EFMM ainda não acabou. Depois de anos de espera, uma licitação foi aberta para que uma empresa assumisse a responsabilidade pela revitalização e uso da área onde existe ainda parte da estrutura original da ferrovia, em Porto Velho. A licitação foi iniciada em 2022 e somente em 2023 saiu o resultado. A Amazonfort, empresa vencedora, recebeu a concessão de outorga para 20 anos, o que envolve a gestão e administração do local. O espaço está fechado e, de acordo com a assessoria de imprensa da Amazonfort, passa por obras de revitalização e estruturais com um prazo de conclusão e posterior entrega do complexo para a população de 120 dias.
Ter de volta pelo menos um vislumbre do que foi a Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, conseguindo dar uma destinação e tratamento mais dignos à memória da ferrovia é o mínimo que todos os atores envolvidos na questão, poder público, instituições, empresas e a própria sociedade brasileira devem fazer por todos que lutaram e lutam até hoje por este importante pedaço da história nacional e mundial.