A riqueza cultural por trás do movimento Beiradão

Cassandra Castro

Como todas as manifestações artísticas, a música também traz na sua essência uma série de referências históricas e carrega a memória cultural de um povo. Mais do que trilha sonora de momentos especiais, a música transcende fronteiras e é capaz de romper barreiras diversas.  Muitas vezes, o gênero musical consegue tamanha simbiose com as pessoas e o meio onde é ouvido e produzido, que chega a imprimir quase uma “ digital”, uma sonoridade que é , ao mesmo tempo, única e universal.

Quem conhece o Norte do Brasil e visitou locais como, por exemplo, o mercado municipal Adolpho Lisboa, em Manaus, deve ter se deparado com uma sonoridade alegre e dançante, quase irresistível e que é conhecida como “ Beiradão”. Mas, o que torna este som contagiante e tão a cara da Amazônia?

Bernardo Mesquita é autor do livro que conta a história dos músicos migrantes no Amazonas /foto: divulgação

Para o professor de história, Bernardo Mesquita, autor do livro “ Das Beiradas ao Beiradão” – A música dos trabalhadores migrantes no Amazonas – o Beiradão é um processo social e histórico. Mesquita estuda as práticas musicais da Amazônia sob a luz do marxismo latino-americano. Ele fala que o Beiradão  “ corresponde a um conjunto complexo de ritmos e práticas musicais cultivadas e desenvolvidas na trajetória histórica destes músicos” e destaca o papel fundamental de músicos amazonenses para o desenvolvimento deste ritmo. “ Na década de 80, a música amazonense integra-se contraditoriamente à indústria capitalista da música através de contratações junto a gravadoras nacionais e regionais. Embora tenha surgido entre os paraenses não resta dúvida da importância fundamental que músicos amazonenses tiveram no desenvolvimento deste ritmo que foi alavancado como estratégia de mercado por Pinduca e a gravadora Copacabana”.

A geração de artistas dos anos 80 que gravou seus trabalhos, deixou um registro fonográfico e um legado às gerações futuras. Atualmente, vivemos um florescer de um movimento musical com uma nova geração de músicos amazonenses”. Bernardo Mesquita

O saxofone e a memória afetiva

O músico Fidel Graça, 34 anos, é natural de Borba, cidade do interior do Amazonas.  Ele conta que traz na memória um forte referencial ligado ao saxofone, instrumento que é praticamente o carro-chefe do Beiradão.  Fidel conta que em Borba, a cultura da cidade tem uma ligação muito forte com o sax. Ele lembra que música e religiosidade caminham juntas, principalmente durante a época de homenagens ao padroeiro de Borba, Santo Antônio. “ Lá acontece todos os anos a “ Canoa de Entrada” que é um cortejo, uma procissão  na qual o santo padroeiro da cidade, ( a estátua de Santo Antônio) é deixado numa comunidade próxima a Borba neste evento que antecede a festa do padroeiro ( que acontece de 1 a 13 de junho). No dia primeiro, acontece a Canoa de entrada, que é uma procissão fluvial. A partir do momento que o santo chega no porto até a igreja, tem uma procissão que acompanha o santo e nela é tocado o dobrado tradicional que é uma composição muito antiga do maestro Rufino e isso me influenciou muito porque eu cresci vendo isso, cresci vendo o seu Edivaldo tocar o dobrado tradicional.  Eu ouvia aquilo ali e queria repetir”, relembra Fidel.

Fidel Graça remete o Beiradão às memórias de infância/foto: Marcelo Ramos

Fidel sempre que ia a Borba, tocava o saxofone influenciado pelos músicos de lá, como Edivar Souza e Diquinho do Sax. Outro nome que sempre é lembrado quando o assunto é saxofone e, consequentemente, o ritmo do Beiradão, é o de Teixeira de Manaus.

Teixeira de Manaus ajudou a popularizar o ritmo na década de 80/foto: reprodução internet

Rudeimar Soares Teixeira, o “ Teixeira de Manaus” , nasceu no interior do Amazonas e aprendeu a tocar saxofone sozinho. Compositor, arranjador e cantor de toda a sua obra, foi o grande nome da música amazonense da década de 80 e ajudou a popularizar o Beiradão.

O músico amazonense sempre ia a Borba fazer apresentações e era muito popular na cidade, conta Fidel. Em 2014, Teixeira de Manaus fez o último show antes da aposentadoria e recebeu homenagens durante o Festival Amazonas de Ópera, na capital amazonense.  Fidel relembra que a família dele veio num barco alugado para prestigiar a apresentação de Teixeira de Manaus. Para homenagear o músico, eles mandaram fazer camisetas com os dizeres: “Teixeira de Manaus, nós te amamos no café, no almoço e na janta”, uma referência à paixão dos borbenses pelo músico.

Fidel revela que leu o livro do professor Bernardo Mesquita e que a obra abriu muito a mente dele em relação à música do Beiradão. “ Eu acreditava que não haveria espaço em Manaus, valorização que as pessoas estão tendo (atualmente) neste tipo de movimento”. Para Fidel, o Beiradão é muito mais do que um ritmo específico. “ Ele é uma prática musical feita no interior do Amazonas tendo como conexão , os rios, as festas dos santos como coisas marcantes desse movimento”.

O historiador Bernardo Mesquita fala da riqueza contida nos beiradões amazonenses: “Os beiradões amazonenses foram práticas musicais resultantes de referenciais múltiplos do popular ao erudito, das bandas de música aos conjuntos de jazz, do gambá às charangas, da valsa ao choro, da lambada ao forró.” Para ele, existe uma necessidade histórica de afirmação musical no Amazonas.

“O movimento histórico destes trabalhadores gerou na história recente uma busca pela auto-consciência histórica da música no Amazonas. A história destes trabalhadores músicos nos mostra como é árdua a luta pela sobrevivência dentro do capitalismo dependente baseado na superexploração do trabalho e por isso, esta memória histórica afirma a força dos músicos no Amazonas.” Bernardo Mesquita

Resgate histórico

O livro de Bernardo Mesquita tem o prefácio assinado pelo cantor e compositor amazonense, Hadail Mesquita, um dos precursores da difusão do “Beiradão”. Hadail vem de uma geração que traz referências musicais dos anos 80, como Chico Cajú e Teixeira de Manaus. E, desde 2018, defende e dá voz ao beiradão como gênero.

“É inegável que o beiradão é um fenômeno cultural. Não é uma cultura sazonal, é o ano inteiro, são 17 mil quilômetros de rios, com festas o ano inteiro, tocando essa música, que é uma mescla cultural muito grande. Não são só as bandas, os saxes, é também a culinária, a caldeirada de bodó, o jaraqui, o linguajar, o lado religioso, que são os festejos, tudo isso que culmina na música. Uma cultura muito rica”. Hadail Mesquita

Hadail comanda o canal no YouTube, o “Portal Beiradão”, com mais de 10 milhões de visualizações e que concentra as maiores expressões musicais do gênero.

By emprezaz

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