Contagem regressiva para uma urgente guinada na agenda ambiental para a Amazônia

Marcus Vinicius de Athaydes Liesenfeld Ambientalista, Biólogo, Doutor em Ciências de Florestas Tropicais, Professor da Universidade Federal do Acre – Campus Floresta e no Mestrado em Ciências Ambientais

Não foi por falta de avisos, ou por falta de recomendações de como cuidar das florestas, o motivo por estarmos vivendo esse atual antropoceno de catástrofes climáticas e de desrespeito à natureza [1]. O pouco lembrado, mas célebre cientista Alexander von Humboldt [2], considerado o pai do ambientalismo, há 215 anos atrás já advertia sobre a cega ganância da humanidade pelo desenvolvimento e dos decorrentes impactos ambientais negativos, muitas vezes irreversíveis. O cientista prussiano, que viveu entre 1769 e 1859, visitou a floresta amazônica venezuelana no início de 1800, e seus trabalhos influenciaram diversos biólogos, ecólogos e conservacionistas que o sucederam, inclusive Charles Darwin. Humboldt afirmou que “Ao derrubar as árvores que cobrem o topo e as encostas das montanhas, os homens de todos os climas parecem trazer duas calamidades para as gerações futuras ao mesmo tempo; falta de combustível e escassez de água.”

As questões levantadas por Humboldt e suas reflexões seguem como pauta atual em que se planeja o futuro da humanidade no planeta Terra. Quanto é necessário desenvolver? Ser ou consumir? Qual o papel de cada humano na garantia da sustentabilidade de nosso planeta? Desenvolver de forma sustentável prevê que haja capacidade atual no suprimento das necessidades das pessoas, mas também que esse uso atual não comprometa as necessidades das futuras gerações. O desenvolvimento hoje não pode esgotar os recursos a serem usados no futuro.

Em uma Amazônia cercada por pressões de desenvolvimento, está cada vez mais evidente que diversas atividades atuais estão a esgotar preciosos recursos, estão a definhar os recursos que pertencem também aos nossos descendentes [3]. Passados 22 anos do século XXI, ainda o desmatamento, as queimadas e a pecuária extensiva, os mega-projetos hidrelétricos, as estradas, o aumento dos agrotóxicos, a mineração predatória e a contaminação por mercúrio, os impactos das espécies invasoras, a temida “savanização” da floresta úmida [4], e a recrudescência dos conflitos sociais são aspectos que infelizmente seguem sendo preocupantes, seguem sendo presentes na Amazônia, e em outras florestas tropicais [5]. As negativas consequências destas atividades distanciam cada vez mais a humanidade de um desenvolvimento sustentável funcional.

Cuidar do futuro da Amazônia é refletir seriamente sobre as visões antagônicas de ocupação do seu território. Pensar em uma territorialidade capitalista é defender grandes propriedades sem floresta e a expansão do agronegócio predatório, dar respaldo aos conflitos e à violência rural e assumir total falta de compromisso com o meio ambiente. Por outro lado, pensar na Amazônia do futuro na visão de uma territorialidade sociodiversa é defender a existência de diferentes povos e de comunidades tradicionais, respeitar as diferentes e próprias maneiras de interação dessas comunidades com os ambientes onde vivem, e assim compreender porque elas são protagonistas no atual cenário de conflitos pelos direitos territoriais.

Nos últimos quatro anos o Brasil viveu, ou sobreviveu, a um “apagão ambiental” onde a inércia da fiscalização, as mudanças na legislação, o enfraquecimento da participação popular nos conselhos e as notícias falsas, permitiram solo fértil ao crescimento da territorialidade capitalista na sua face mais perversa e predatória, resultando somente em 2019 em um aumento em 23% nos conflitos no campo, segundo a Comissão Pastoral da Terra [6]. Dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública indicam que entre 2019 e 2022 a taxa de violência letal na Amazônia rural superou a média nacional [7]. Outro aspecto perverso foi o registro recorde de novos agrotóxicos, que só em 2020 foi de 493 novos venenos no mercado [8]. Também em 2020 o INPE indicou aumento de 64% no desmatamento causado pela mineração em Terras Indígenas, em relação à 2019 [9]. Dados do IMAZON informam que em 2018 a Amazônia perdeu 1.422 km2 de florestas, em 2021 a perda saltou para 3.088 km2, mantendo tendência no alto em 2022 com 3.360 km2, contribuindo com que o Brasil, em 2021, tivesse o maior registro de emissão de carbono em 16 anos. Agropecuária e desmatamento somam mais de metade dessas emissões [10].

Trocar a floresta por qualquer outra paisagem é certeza de contribuição para o agravamento da crise climática. Sejam as emissões que o gado produz, seja a recorrente necessidade de incêndios para manutenção das pastagens ou na própria prática de derrubar a floresta e queimar, a perda de florestas incentiva um círculo vicioso em que quanto maior for a devastação, maior será a degradação das florestas remanescentes, modificando seu microclima, ou seja a capacidade dessas florestas em se proteger de eventos como o fogo. Nesse caso, se proteger do fogo rasteiro, que até 20 anos atrás não era considerado como um risco, pois as florestas ainda não vivenciavam o clima atual mais seco [11]. No futuro de uma Amazônia que contribuirá com a diminuição dos efeitos adversos das mudanças climáticas, não cabe mais o fogo como ferramenta de manejo. Mesmo as formas tradicionais de manejo controlado do fogo deverão se adaptar e procurar, a todo custo, formas alternativas ao uso das queimadas.

Um resumo indesejável e tenebroso do futuro da Amazônia, caso o pior aconteça, é a savanização. Caso as pressões sobre a floresta, associadas à crise climática, com cada vez mais destruição da paisagem nativa e degradação da diversidade socioambiental como um todo, não diminuam ou mesmo cessem, efeitos em cascata produzirão um futuro de paisagens degradadas. Metade da floresta amazônica como a vemos hoje poderá desaparecer, atingindo um ponto de não retorno à sua estrutura original. A floresta úmida será então substituída por uma variação do Cerrado, uma savana provavelmente mais pobre em espécies e em estrutura. Enquanto esse pode ser o futuro local, a mudança no norte pode afetar diversos outros estados ao sul da Amazônia, diretamente alterando seus regimes de chuvas. Para o mundo, a savanização da Amazônia talvez seja a pior catástrofe resultante das mudanças climáticas, que abrirá caminho para muitas outras ameaças à humanidade futura.

O apagão ambiental imposto no Brasil nos últimos quatro anos, emoldurado na para sempre lembrada frase de um dos ministros do governo: “aproveitar para passar a boiada”, está com os dias contados. O novo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, eleito democraticamente, já se posicionou de forma bastante coerente e equilibrada sobre muitos dos temas abordados no presente ensaio, gerando essa sensação de uma boa expectativa, uma expectativa de guinada nos temas ambientais na Amazônia e de esperança no seu futuro sustentável. O Brasil não é principiante no ambientalismo, muito pelo contrário, seu protagonismo histórico na agenda mundial em meio ambiente é notável. Expoente exemplo dessa jornada é o discurso de Chico Mendes na ONU, em 1986, que está entre tantos outros exemplos de pessoas notáveis que contribuíram na promoção da ambientalização dos movimentos sociais e na politização dos movimentos ambientais. Integrar a compreensão destes aspectos fez aproximar as lutas e reivindicações destes movimentos [12].

As maiores esperanças para o futuro da Amazônia estão depositadas nos movimentos sociais que reinvindicam justiça socioambiental, justamente os movimentos rechaçados pelo governo que finda. São esses movimentos que chamam a atenção do restante da população brasileira sobre os riscos dos projetos de lei que enfraquecem a legislação ambiental, que querem restringir a demarcação de terras indígenas ou liberar aí a mineração, ou que planejam extinguir ou flexibilizar o licenciamento ambiental, entre outras perigosas mudanças, que invariavelmente causarão mais devastação e piora nos sombrios prognósticos já citados para a Amazônia [13]. Ao longo dos anos, os movimentos sociais incorporaram a dimensão ambiental na medida em que a própria questão agrária foi se tornando uma questão ambiental. Isso significa que todos que defendem a Amazônia estão no mesmo barco. Mais do que isso, estão nesse barco todos que indiretamente dependem da Amazônia: enfim, todos somos ambientalistas (hoje ser ambientalista é uma escolha, no futuro, será uma necessidade).

Assim, não há dúvida da necessidade de uma guinada de proposições na temática ambiental no Brasil, a partir de 2023. Primeiro, meio ambiente deve ser destaque nas políticas do novo governo, preferencialmente começando com a revisão e revogação de leis antiambientais. Levantamento feito pelo Observatório do Clima, ainda em novembro de 2021, indicava cerca de 400 normas antiambientais, o total de medidas instituídas durante os últimos quatro anos com o objetivo claro de desmonte da política ambiental [14]. Segundo, essa guinada deverá reverberar fora do país, precisando o Brasil reassumir sua posição de protagonista na luta contra a crise climática. Nessa perspectiva, com os movimentos socioambientais como aliados, a agenda ambiental da guinada evidenciará ao mundo esse grande escudo contra a crise climática que é a floresta amazônica, e passará a ser vitrine, e se tornará um exemplo de boas práticas. Deve haver desenvolvimento sim, mas com responsabilidade socioambiental, protegendo a floresta em pé e replantando tudo que for preciso. Em suma, se colocar na agenda, o Brasil pode sim salvar o mundo da crise climática.

Referências

[1] Vieira, I.C.G., Toledo, P.M. de & Higuchi, H. (2018). A Amazônia no antropoceno. Ciência e Cultura, 70, 56–59. http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?script=sci_abstract&pid=S0009-67252018000100015&lng=en&nrm=iso&tlng=en

[2] Super Interessante. (2022). Quem foi Alexander von Humboldt, o mais famoso desconhecido da ciência. Super Interessante. Available at: https://super.abril.com.br/especiais/quem-foi-alexander-von-humboldt-o-mais-famoso-desconhecido-da-ciencia

[3] IPCC. (2022). Climate change 2022: impacts, adaptation, and vulnerability. Cambridge University Press. Cambridge University Press, Cambridge, UK and New York, NY, USA. https://report.ipcc.ch/ar6/wg2/IPCC_AR6_WGII_FullReport.pdf

[4] Cândido, L.A., Manzi, A.O., Tota, J., Silva, P.R.T. da, Silva, F.S.M. da, Santos, R.M.N. dos, et al. (2007). O clima atual e futuro da Amazônia nos cenários do IPCC: a questão da savanização. Ciência e Cultura, 59, 44–47. http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?script=sci_abstract&pid=S0009-67252007000300017&lng=en&nrm=iso&tlng=pt

[5] Fearnside, P.M. (2005). Desmatamento na Amazônia brasileira: história, índices e conseqüências. Megadiversidade, 1, 113–123. http://www.mstemdados.org/sites/default/files/Desmatamento%20na%20Amazonia%20brasileira,%20historia,%20indices%20e%20consequencias%20-%20Philip%20Fearnside%20-%202005.pdf

[6] Agência Brasil. (2020). País registrou 1.833 conflitos no campo em 2019, mostra relatório. Agência Brasil. Available at: https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2020-04/pais-registrou-1833-conflitos-no-campo-em-2019-mostra-relatorio

[7] Anuário brasileiro de segurança pública: 2022. https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2022/06/anuario-2022.pdf?v=5

[8] G1. (2022). Após novo recorde, Brasil encerra 2021 com 562 agrotóxicos liberados, sendo 33 inéditos. https://g1.globo.com/economia/agronegocios/noticia/2022/01/18/apos-novo-recorde-brasil-encerra-2021-com-562-agrotoxicos-liberados-sendo-33-ineditos.ghtml

[9]          Inpe. (2022). Desmatamento na Amazônia Legal – PRODES. http://terrabrasilis.dpi.inpe.br/app/map/deforestation?hl=pt-br

[10] Potenza et al. (2021). Análise das emissões brasileiras de Gases de Efeito Estufa e suas implicações para as metas climáticas do Brasil. Sistema de Estimativa de emissões de gases do efeito estufa, Observatório do Clima. https://seeg-br.s3.amazonaws.com/Documentos%20Analiticos/SEEG_9/OC_03_relatorio_2021_FINAL.pdf

[11] Liesenfeld, M.V.A.; Vieira, G.; Miranda, I.P. (2016) Ecologia do fogo e o impacto na vegetação da Amazônia. Pesquisa Florestal Brasileira, v. 36, n. 88, p. 505-517. https://pfb.cnpf.embrapa.br/pfb/index.php/pfb/article/download/1222/544/15015

[12] Acselrad, H. Ambientalização das lutas sociais-o caso do movimento por justiça ambiental. Estudos avançados, v. 24, p. 103-119, 2010. https://www.scielo.br/j/ea/a/hSdks4fkGYGb4fDVhmb6yxk/

[13] IstoÉ. (2022). O combo da morte: Cinco projetos que tramitam no Congresso promovem a destruição ambiental e violam os direitos indígenas. https://istoe.com.br/o-combo-da-morte/

[14] Pinto, D. (2022). Quais as revogações prioritárias que Lula deveria fazer pelo meio ambiente? Jornal OEco. https://oeco.org.br/reportagens/quais-as-revogacoes-prioritarias-que-lula-deveria-fazer-pelo-meio-ambiente

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