Redação Planeta Amazônia
Cientistas de cinco países e especialistas indígenas uniram esforços e conhecimentos para inventariar animais, plantas, saberes e vivências do Alto Rio Içá, região no extremo oeste do Amazonas que integra a bacia Putumayo-Içá e abrange Brasil, Colômbia, Peru e Equador. A região possui alta diversidade de espécies e conservação excelente. Nos últimos anos sofre ameaças de garimpo, extração de madeira e tráfico de animais que podem colocar a perder a biodiversidade e os modos de vida dos povos originários.
Os resultados da expedição chamada Inventário Rápido Biológico e Social nº 33 realizada pelo Field Museum of Natural History de Chicago (EUA) em estreita parceria com o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa/MCTI) e outras instituições durante 20 dias de maio foram apresentados em Seminário na quarta-feira (28), no Inpa, em Manaus. O Alto Rio Içá compreende uma área de 463,8 mil hectares de florestas públicas não destinadas ao longo do rio Içá e onde vivem muitas comunidades indígenas.
No Seminário, os pesquisadores apontaram a necessidade de ações integradas de conservação e preservação imediatas com o reconhecimento do território como Terra Indígena. A expectativa é que a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) inicie em breve o processo e que os dados do inventário subsidiem o processo de reconhecimento. A área solicitada vai do Lago do Corrêa até a fronteira com Colômbia e Peru, onde moram povos como os witoto, kaixana, kokama e tikuna.
Conforme o levantamento botânico do inventário, a região do Alto Rio Içá é formada por cerca de 80% de florestas de terra firme e quase 20% de áreas alagáveis (várzeas e igapós) e menos de 1% de campinarana, um ecossistema amazônico também de área alagável, mas com solos arenosos e pobres em nutrientes, revelando a importância estratégica para a conservação da biodiversidade.
O inventário ocorreu em seis comunidades indígenas e envolveu 71 pessoas, entre cientistas de dez instituições de cinco países diferentes e especialistas indígenas Kokama, Tikuna e Kambeba. Para a pesquisadora do Inpa e coordenadora brasileira da expedição, a bióloga Fernanda Werneck, o inventário deve representar um marco para a ciência brasileira, para as parcerias institucionais com as comunidades tradicionais e para a valorização da sociobiodiversidade da região.
“A expedição ter transcorrido com sucesso é o nosso principal resultado, dada toda a logística envolvida, mas todos tinham o mesmo objetivo que é entender de maneira colaborativa a diversidade biológica, cultural e social da região em prol de uma causa comum que é preservar o alto Rio Içá e os modos de vida e o território dos povos tradicionais. Além do estreitamento da parceria social-biológica entre as instituições e com as comunidades tradicionais pela proteção da Amazônia”, destaca Werneck.
A expedição registrou mais de 2.800 espécies, entre coletas, fotografias e captações de som, alguns são registros novos para o Brasil, entre eles o passarinho formigueiro-de-Pelzeln, que não tinha nome popular e os cientistas aproveitaram para chamar a ave de formigueiro-do-Içá. Os cientistas já apontam uma quantidade significativa de espécies novas para a ciência, algumas conhecidas pelos indígenas. Entre as descobertas estão dez potenciais espécies novas de peixes, como um tetra Pristella que é um peixinho de uso ornamental, e dez de anfíbios, incluindo pererecas e salamandras.

Chama atenção também a riqueza de recursos da biodiversidade utilizada pelos povos originários para várias finalidades, totalizando mais de 400 espécies identificadas pelos nomes populares (etnoespécies). Delas, 135 plantas e 177 animais são utilizados na alimentação, aproximadamente 80 espécies na construção, medicinas entre outros usos. O inventário identificou uma longa história de uso e ocupação do território, do saber ancestral vivo, riquíssimo e visível na continuidade e formas de morar e se relacionar no território e nas redes de relações.
Segundo a cacica da comunidade indígena Raízes da Ayahuasca, Milena Kokama, a expedição representa a união necessária dos conhecimentos científicos e indígenas para fortalecer a luta pelo reconhecimento do direito dos povos tradicionais sobre seus territórios com a demarcação da TI e um passo importante para a conservação da biodiversidade Amazônica, garantindo o equilíbrio ecológico e o futuro da vida no planeta.
“A expedição é muito importante para nós, indígenas e organizações indígenas, porque as pesquisas realizadas vêm para validar o nosso conhecimento tradicional. O conhecimento ocidental e o ancestral devem andar juntos. Preservar a mãe natureza é compromisso e responsabilidade de todos, pois sem ela não existe vida nem futuro”, declara a cacica.
Estiveram na mesa de abertura do seminário a Secretária Nacional de Biodiversidade, Florestas e Direitos Animais do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA) e pesquisadora do Inpa, Rita Mesquita, as lideranças das comunidades indígenas do Alto Rio Içá, Higino Chota, Milena Kokama, Jackson Morães, Eraldina da Costa Tikuna, com moderação da especialista em articulação com Povos Indígenas da WCS Brasil, Ana Luiza Melgaço.
A área sofre com pressões e ameaças, como conta o cacique da comunidade Mamuriá II Higino Chota. “As pessoas chegam lá dizendo que nós não temos direito no nosso território, e nós não temos documento, não temos nada pra provar que é nossa. Tem muitos invasores de madeira, de lago, garimpeiros, tudo chega lá. Então nós procuramos correr atrás e fazer esse reconhecimento porque nós temos direito sim ao nosso território”, afirmou Higino Kokoma.
Rita Mesquita destacou a importância das TI na conservação da biodiversidade, mesmo que este não seja o objetivo primário do reconhecimento de uma terra indígena, que é o reconhecimento do direito originário de um povo sobre o território. Também lembra que estudos mostram que as TI são mais efetivas para conter o desmatamento que parques nacionais, e isso é levado em consideração na agenda nacional de conservação da biodiversidade do MMA.
“No caso do Rio Içá, aquela região possui grandes áreas de glebas federais não destinadas, e sabemos que o grosso do desmatamento na Amazônia ocorre justamente em cima dessas áreas, porque é quase como se fosse uma terra de ninguém. Portanto, avançar com o processo de reconhecimento é muito importante também para contribuir com a conservação da biodiversidade e com o combate ao desmatamento, e para o MMA isso é muito importante”, destaca Mesquita.

Resultados preliminares
Foram apresentados os resultados iniciais em dez áreas biológicas e sociais da expedição: geologia, botânica, ictiologia (peixe), herpetologia (anfíbios e répteis), aves, mastozoologia (mamíferos), história socioambiental, etnoconhecimento, uso de recursos naturais e governança e conflitos socioambientais. As coletas biológicas vão enriquecer os acervos do Programa de Coleções Científicas Biológicas do Inpa.
Segundo o coordenador da expedição pelo Field Museum, o antropólogo Jeremy Campbell, o conhecimento gerado e registrado pelo Inventário vão auxiliar nos processos de proteção dos territórios indígenas e de designação de áreas de conservação. A expectativa é que os dados consolidados estimulem mais produção científica e mais parcerias entre as instituições brasileiras, internacionais e as comunidades tradicionais da Amazônia.

“Fizemos o levantamento multidisciplinar da área registrando os animais presentes na parte brasileira da bacia, registramos inclusive novas espécies para a ciência e principalmente registramos a presença humana dessa região que existe há décadas ou milênios, encontramos sítios arqueológicos importantes, e o sistema de manejo que os moradores usam. Tudo isso vai ser compilado em um relatório executivo que ficará disponível e vamos fazer também uma devolutiva nas comunidades do Alto Rio Içá que é uma região bem desconhecida, mas que tem pessoas orgulhosas do que têm, da natureza e dos seus conhecimentos”, adianta Campbell.
O inventário mostrou que os sistemas agroecológicos indígenas, que envolvem pesca, caça, agricultura rotativa e manejo das florestas, são importantes para manter a biodiversidade e a saúde dos ecossistemas. Os membros das comunidades têm um conhecimento profundo sobre o ambiente onde vivem e usam estratégias de uso da terra que foram passadas de geração em geração. Essas estratégias são baseadas na experimentação, na cooperação entre as pessoas e na preservação da cultura, e as comunidades dependem diretamente do equilíbrio ecológico local para sua subsistência.
Saiba mais
O Inventário Rápido do Field Museum é um tipo de levantamento que considera a vida das pessoas e a do território (florestas e águas) uma só vida, entendendo que a vida natural e social não estão divididas. O inventário traz recomendações integradas para a conservação ambiental e o bem-estar das populações locais, dirigidas a governos e outras autoridades relevantes.
A expedição foi realizada em maio por uma equipe multinacional e interdisciplinar liderada pelo Field Museum of Natural History (Museu Field/ EUA) em estreita parceria com o Inpa, contando com a participação de diversos alunos e pesquisadores do Instituto. A Wildlife Conservation Society – Brasil (WCS), o Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá (IDSM), o Núcleo de Estudos Socioambientais do Amazonas (Nesam), a Universidade Federal do Amazonas (Ufam) e a Universidade do Estado do Amazonas (UEA).