Redação Planeta Amazônia
No período de verão entre 2015 e 2016 na região de Barcelos, no Amazonas, a seca prolongada propiciou muitos incêndios florestais, que se estenderam por roças no entorno da cidade e de várias comunidades, chegando a queimar casas.
Nesse período, foram registrados mais de 14 mil focos de incêndio no município, enquanto em anos anteriores esse número não chegava a 200. Segundo análises do Instituto Socioambiental (ISA) – com base em dados de sensoriamento remoto –,os incêndios devastaram uma área de 52.000 hectares de igapós, 389.000 de campinaranas e 138.000 de florestas de terra firme apenas nesse município.
Neste ano, as condições climáticas parecem estar se repetindo: a falta de chuva começou mais cedo,já desde agosto, altas temperaturas atmosféricas e da água dos rios, vazante do rio acentuada.
Os Agentes Indígena de Manejo Ambiental (AIMAs) estão presentes em cinco comunidades e na sede do município de Barcelos, e acompanham diariamente as atividades de manejo e indicadores ambientais e climáticos. Assim podemos observar como foi o começo desse verão. Na comunidade de São Roque, rio Caurés, por exemplo, o sr. Pedro Raimundo Fernandes (morador de 63 anos, também AIMA voluntário), faz anotações atentas.
Hoje (27/07) amanheceu nublado, deu uns trovões à tarde, mas não choveu. Os comunitários estão felizes, na esperança de fazer verão para queimarem seus roçados. Estão intencionados a colocarem bastante roça, para o próximo ano terem uma boa venda de farinha e outros produtos, como banana, abacaxi e macaxeira. São Roque foi a comunidade mais produtora de farinha dessa região, mas por falta de bom verão, fracassou um pouco. Agora está voltando tudo de novo.
08/08, São Roque. As águas estão descendo, e os dias muito ensolarados. Hoje já teve uma diferença: o dia foi quente, mas o vento também movimentou o dia inteiro. Quando isso acontece, é sinal de um bom verão.
09/08 São Roque. O rio desceu meio palmo. Uma quarta-feira ensolarada, que coloca esperança aos comunitários de um bom verão, para todos queimarem seus roçados, depositando confiança de que no próximo ano, façam uma boa comercialização de muita farinha.
Um bom verão é importante para o manejo agrícola nas comunidades e para os ciclos de vida, permitindo a queima de áreas de floresta ou capoeira abertas para novos cultivares e a desova de bichos-de-casco nas praias formadas na vazante, por exemplo. Verões extremos, no entanto, trazem mais riscos do que benefícios para a vida na região, tornando o trabalho mais árduo e difícil, estressando também os processos ambientais, como lemos na continuação do diário do sr. Pedro.
25/08 Sítio São Luiz, São Roque. As águas continuam descendo. Hoje às 3h da manhã caiu uma chuvinha por dez minutos. Quando amanheceu, já foi brilhando. Muito vento e sol quente. A gente não aguenta na roça – só até as 10h, arrebentando. Eu terminei de derrubar o roçado de seu Neco às 9:30h, o sol estava muito quente. A partir desse horário, as folhas das plantas começam a murchar, só voltam ao normal quando anoitece.
26/08 São Roque. O rio está secando muito. Como os dias são muito quentes, e a terra do sítio muito ressecada, alguns açaizeiros estão jogando seus cachos antes das vingas surgirem. A quentura é intensa durante o dia. As caças, como veado, onça, porco e outras estão se aproximando das margens para beberem água, pois no interior da floresta só existe água nos igarapés grandes que não secam. Não está havendo mais frutas para os animais comerem. Nos igarapés, também são pouquíssimas as frutas para os peixes.
Os moradores das comunidades, que observam e manejam cotidiana e continuamente seus ambientes e paisagens, buscam identificar indicadores que possam revelar as condições climáticas e o fluxo dos ciclos de vida, orientando assim suas atividades na agricultura e na procura de outros alimentos (pesca, caça, coleta de frutos e insetos etc.). Muitos são esses indicadores, e complexas suas inter-relações, como mostram os diários dos AIMAs.
04/09 São Roque. O rio está secando muito. Estão se multiplicando os dias de aquecimento global. Está com muitos dias que não chove.
Em Bacabal, comunidade do baixo rio Aracá, o AIMA Francisco Saldanha, registra no dia 27/09. “Nesse ano percebi que o sol está muito quente, demais; também percebi que o rio está secando muito, e sua água está muito quente.”
Observações e previsões
Na primeira semana de outubro foi realizada uma oficina entre Agentes Indígena de Manejo Ambiental (AIMAs), equipe do Instituto Socioambiental (ISA) e lideranças da Associação Indígena de Barcelos (ASIBA) e da Coordenadoria da Associações Indígenas do Médio e Baixo Rio Negro (CAIMBRN/FOIRN) para discutir justamente os resultados de pesquisas sobre os impactos dos incêndios de 2015 e 2016 na economia das comunidades indígenas e nas paisagens que passaram pelos incêndios.
Depois do ocorrido, esse grupo se debruçou para entender melhor aquele fenômeno intenso e suas consequências – conversando e entrevistando os moradores e observando o ambiente em suas atividades cotidianas de manejo – agricultura, pesca, coleta de frutos, caça, também nas viagens.
Como vimos nas citações dos diários, aquela primeira semana de outubro sucedia mais de um mês de verão intenso, com altas temperaturas e pouquíssima chuva, o que inspirou comparações entre o atual verão e aquele de anos atrás. Também corriam notícias dos primeiros incêndios florestais na região, aumentando a ansiedade.
A estiagem na Amazônia está intensa em 2023, levando a uma acentuada vazante dos rios da porção ocidental dessa bacia hidrográfica, com registros de seus mais baixos níveis já registrados no Amazonas e em vários de seus principais afluentes. No porto de Manaus, o nível do Rio Negro atingiu um metro abaixo do recorde de 2010, até então o mais baixo na série iniciada em 1904. Puxada inicialmente pelo rio Solimões, a vazantes já se mostra significativa no Rio Negro.
No começo de outubro, os barcos de passageiros (recreios) pararam de fazer viagens rio acima, partindo de Manaus para as cidades do Rio Negro; os barcos e balsas de transporte de carga subiam lentamente, com notícias frequentes de barcos encalhados. Esse fato dificultou a navegação de maior calado, responsável pelo abastecimento das cidades ribeirinhas a partir de Manaus.
Um problema já sentido é o desabastecimento de combustível e os apagões em São Gabriel da Cachoeira, já que o diesel é usado para geração de energia pelas termelétricas locais.