Viva as Línguas Originárias

Por Jama Peres pereira (*); Joice Alberto de Souza (**) e Lislyn Peres de Almeida. L(***)

Hoje no Brasil temos em torno de 305 povos indígenas e cerca de 200 línguas indígenas  ainda vivas. Segundo os dados  do IBGE de 2022, o número de indígenas residentes no Brasil era de 1.693.535 pessoas, o que representava 0,83% da população total do país. Em 2010, o IBGE contou 896.917 mil indígenas, ou 0,47% do total de residentes no território nacional. Isso significa que esse contingente teve uma ampliação de 88,82% desde o Censo Demográfico anterior.

O primeiro ataque violento à nossa existência foi a chegada dos não indígenas dentro dos nossos territórios, não respeitando esse espaço enquanto corpo de conhecimento, de múltiplas práticas e vivências. O contato e invasão dos nossos territórios é considerado por nós como um dos maiores ataques violentos sofridos pelos nossos corpos-territórios. Portanto, desde 1500 sofremos ataques sistemáticos. O contato com essa violência aconteceu sob diferentes formatos e pretextos, seja com a mentira de salvação da alma que nos discriminou de forma silenciosa, até deixar de falar as línguas indígenas nesse processo.

O apagamento das identidades e línguas indígenas, desde o início sempre bem planejada. Segundo Garcia,2017,p. 24. Em meados do século XVIII, o ministro Sebastião José de Carvalho e Melo, futuro Marquês de Pombal, elaborou uma série de medidas visando integrar as populações indígenas da América à sociedade colonial portuguesa. O Diretório tinha como objetivo principal a completa integração dos índios à sociedade portuguesa, buscando não apenas o fim das discriminações sobre estes, mas a extinção das diferenças entre índios e brancos. Dessa forma, projetava um futuro no qual não seria possível distinguir uns dos outros, seja em termos físicos, por meio da miscigenação biológica, seja em termos comportamentais, por intermédio de uma série de dispositivos de homogeneização cultural.

No século XVIII, no entanto, além das populações indígenas, vários outros segmentos sociais não utilizavam o português para se comunicar, mas sim a língua geral tupi. Segundo Ângela Domingues[1], o uso da língua portuguesa seria empre-gado como um critério nas disputas de fronteira entre Portugal e Espanha, baseadas no princípio do uti possidetis.7 A língua portuguesa teria, então, dois papéis principais: interferiria na identidade dos índios, tentando transformá-los em portugueses, o que, por sua vez, comprovaria a efetiva ocupação lusitana daquelas terras.

A perspectiva de impor aos índigenas o uso da língua portuguesa, no entanto, tinha um objetivo bem claro neste período: buscava transformá-los em vassalos iguais aos demais colonos. Isto se fazia necessário num momento no qual foram intensificados os conflitos territoriais entre Portugal e Espanha, acarretando a necessidade de o Rei de Portugal possuir um contingente populacional suficiente para habitar as suas fronteiras, garantindo assim a permanência dos seus domínios.

O apagamento gerou grandes consequências as mortes de línguas e identidades dos povos indígenas. Aqui retrato o atual momento sobre o reavivamento das línguas indígenas que estamos vendo acontecer no nordeste, o avivamento da Língua espírito,Kariri Xokó,Potiguara,Pankararu,e outras línguas indígenas de todo país. no círculo vivo   do Toré, evocamos e fazemos avivar as línguas adormecidas  e silenciadas, consequência da posição de igrejas cristãs, que muitas vezes se dizem “salvadoras de almas”, que nos discriminou de forma silenciosa, até deixar de falar as línguas indígenas nesse processo, acabaram  ferindo nosso corpo- território, a nossa sagrada ancestralidade

Os indígenas, que carregam os saberes ancestrais, somos responsáveis pelo cuidado com nossos corpos, preparando o corpo-território com chás, banhos de ervas, emplastos, benzimentos. Também na educação sobre modos sociais de ser indígena, contando as histórias que trazem narrativas de aprender com o hábito da escuta, do desenvolvimento da criança na interação do aprender fazendo as práticas cotidianas da casa/comunidade indígena. Entendemos que o cuidado é um processo educativo na vida indígena.

É importante dizer que o corpo indígena é político e ele não está separado do território. Então, quando nós lutamos pela demarcação de terras, estamos também lutando pela continuidade da nossa existência enquanto o corpo indígena daquele território. Quando o movimento das mulheres indígenas articula de forma mais sistemática os diálogos, fica evidente que o nosso corpo também é um território de conhecimento, carregado de ancestralidade, carregado de uma educação indígena que traz essa diversidade e especificidade das ciências indígenas. Isso é pensado sempre de forma coletiva, pois uma indígena falar em sua língua, por exemplo, é dar continuidade ao conhecimento milenar das ancestrais. Trazer o protagonismo de voz das mulheres indígenas não é só algo individual daquela que está falando, é também diálogo com vários corpos políticos e vários territórios de vários biomas.

Em 2023 o Projeto de Língua que foi autorizado pela câmara, a Mesa Diretora da Câmara dos Deputados o primeiro Projeto de Lei (PL) com texto traduzido para duas línguas indígenas, Guarani-Kaiowá e Akwen. A iniciativa veio da deputada federal mineira, Célia Xakriabá (PSOL-MG). O  PL 4381/23[2] versa sobre procedimentos a serem adotados para combater a violência contra as mulheres indígenas em delegacias e/ou órgãos de acolhimento. Além disso, foi sugerida a criação de uma rede de apoio multidisciplinar voltada ao segmento, neste caso vemos a atuação direta das Mulheres indígenas.

Historicamente, mulheres indígenas construíram trajetórias muito importantes para o reconhecimento e valorização deste papel que desenvolvemos. Por isso, a necessidade de trazer a memória narrativa e colaboração direta das indígenas, com nossas formas de tecer a história dos povos indígenas no Brasil no mobilizar e articular. A partir da ocupação de outros espaços, destacamos as indígenas mães no espaço da universidade, Esta presença resistência fez e faz a diferença. A professora de Wapichana Joice Alberto é um exemplo, “Fiquei muito feliz por ser a primeira da família a entrar em uma universidade e provar que, independentemente de nossa origem, podemos estar onde quisermos. E assim surgiu essa oportunidade para me formar na área que eu estava atuando.

São muitas situações violentas que atravessam as existências dos corpos-territórios das mulheres indígenas, muitas delas vinculadas ao racismo e ao machismo. O simples fato de não dominar a língua portuguesa já é motivo para processos de exclusão e discriminação, a simples presença de nossos corpos em espaços diversos já nos torna vítimas de olhares preconceituosos, especialmente quando estamos com nossas pinturas de jenipapo e urucum. Joice continua, minha língua materna foi a língua wapichana: “aprendi a língua portuguesa aos 8 anos de idade quando comecei a frequentar uma escola, sendo que aos 7 anos fiquei reprovada no 1º ano porque na época era a 1ª série, por não entender nada sobre a língua portuguesa. Eu não entendia o professor e nem o professor entendia o que eu falava”.

No enfrentamento à violência racista, temos construído estratégias de visibilidade para nossas presenças  é caso da nossa iniciativa desde 2021 “LITERATURA INDÍGENA WAPICHANA E INCLUSÃO” Estamos trabalhando para a difusão da literatura indígena Wapichana, transformando em materiais inclusivos para os deficientes Surdos na Língua Brasileira de Sinais(LIBRAS), para que possam ter acesso às narrativas dos povos originários .Produzimos  materiais  inovadores  de Literaturas indígena Wapichana para surdos, uma pequena equipe composta por profissionais indígenas, escritora, tradutora, contador de histórias (tem um papel muito importante na cultura Wapichana). Temos ocupado espaços na publicidade e nas redes sociais, trazendo a diversidade de povos no Brasil e mostrando nossos rostos, corpos e vozes. Pautamos o governo para que nossas línguas sejam reconhecidas como co-oficiais, bem como construímos diálogo e acompanhamos a execução de políticas públicas.

A educação indígena parte das nossas sabedorias ancestrais e com pedagogias que partem do fazer cuidado, do fazer comunitário, relembra Joice: “Obtive uma educação indígena incrível dos meus avós, para onde eles iam, me levavam com eles, saiam para pescar, para caçar, para fazer suas atividades diárias e lá estava eu com eles sempre analisando e aprendendo tudo o que eles faziam. Na minha época não tínhamos tempo para brincar, pois a vovó não deixava, deve ser por isso que hoje sei de muitas coisas. Eu ia pra escola com a roupa que eu tinha, eu não precisava de roupa ou sapato novo para ir à escola, o que importava era o aprendizado. Aprendi a fazer farinha e caxiri aos 11 anos de idade. Passei pelo ritual do wiku, na qual o vovô rezava e depois me ferrava para ser trabalhadora e corajosa. Outro ritual que vivi foi o corte com gilete para ser estudiosa e inteligente. E ele falava que não era para contar a ninguém sobre esse ritual. E assim fui crescendo e aprendendo os valores da vida. Comíamos um tal de tik que podem ser encontrados no pé de najá derrubado, uns bichinhos tipo muxiu e depois tínhamos que morder várias pimentas rezadas. Pois, de acordo com meu avô, se não mordêssemos o tik ia acabar com os nossos dentes. Eu também gostava muito de pescar”.

O que o dar sustentabilidade para a Educação Escolar Indígena, com a nossa presença,  das indígenas, exercendo o papel do cuidado com a nossa filha escola. Ainda há uma longa caminhada para desconstruirmos a valorização e a imposição do Estado nas escolas indígenas, das ciências e disciplinas não-indígenas frente à ciência e pedagogia indígena, mas seguimos nos fortalecendo na construção de novos caminhos possíveis.

É nesse contexto que muitas mulheres indígenas, têm atuado na formação de professoras e professores indígenas que vão trabalhar na sala de aula, com a proposta de atuar na educação escolar no contexto do seu próprio povo como é o caso da professora Joice.


[1] Ângela Domingues, Quando os índios eram vassalos: colonização e relações de poder no Norte do Brasil na segunda metade do século XVIII, Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2000, p. 212.

[2] https://www.em.com.br/app/noticia/diversidade/2023/09/12/noticia-diversidade,1560706/camara-dos-deputados-recebe-primeiro-projeto-de-lei-em-linguas-indigenas.shtml#google_vignette

(*)pesquisadora interdisciplinar/Roterista-povo Wapichana, mestre em Letras Literatura Indígena

(**) professora da Língua Wapichana/Tradutora e intérprete de Wapichana/tradutora e intérprete do Projeto Literatura e Inclusão

(***) instrutora de Libras e Tradutora interprete no Senac-RR/Tradutora interprete no projeto Literatura Wapichana e inclusão

By emprezaz

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